"Eu tenho uma grande capacidade de adaptação", esta pode ser a apresentação mais eficaz que se pode fazer de Hugo Martins, treinador português de 45 anos. Desde cedo que Hugo foi encarando desafios e obstáculos de frente, conseguindo moldar-se às circunstâncias, sem nunca, contudo, abdicar dos seus princípios enquanto treinador e ser humano. Já com uma considerável carreira, o técnico português acumulou experiências que lhe permitem olhar para o 'desporto-rei' de uma perspetiva global e despreconceituosa.
O luto e o estímulo
Natural de Cascais, o trajeto no futebol começou nos escalões de formação do Estoril-Praia, clube onde também jogou o seu pai Fernando Martins nos anos 70 e 80. Contudo, e após ter subido aos seniores, uma grave lesão levou Hugo Martins a refletir acerca do rumo que a sua carreira poderia levar, chegando a uma triste conclusão.
"Após chegar a sénior há dois, três, quatro anos em que sou emprestado a clubes de terceira divisão. Posteriormente acabei por sofrer uma lesão no joelho e nunca mais consegui ser o mesmo. Aí decidi ser justo comigo próprio e percebi que não conseguiria atingir o nível a que me propus e abandonei. E confesso que durante dois ou três anos, fiz ali um luto. O futebol é o amor da minha vida e o facto de eu não poder jogar... pensei que o melhor era dar uma pausa".
Apesar do luto, o amor pelo futebol não morreu por completo, apenas 'reencarnou' noutro corpo e noutra perspetiva, mas sempre com um coração que batia forte pelo desporto-rei; e tal como os outros, tudo o que este coração precisou foi de um estímulo.
"Por sugestão de um amigo meu, fui tirar o curso. Nem que fosse para ter mais noção teórica e também de linguagem. Naquela altura achei que poderia ser interessante, mas nunca pensei em ser treinador. Ser treinador acontece porque fui tirar o primeiro nível e, no decorrer do próprio curso, recebi um convite para ajudar o Marco Silva nos seniores do Fontainhas, que era um clube ao lado da minha casa. Era uma conjugação perfeita. No decorrer dessa experiência, começo também a treinar juvenis. Criei um novo amor e um novo posicionamento no futebol que, se não tivesse sido estimulado, provavelmente nunca teria acontecido e eu nunca teria sido treinador. O amor e a paixão começaram logo ali"
Desde então, em 2007, a carreira de treinador de Hugo Martins arrancou e continua até hoje. Adepto de um futebol intenso e entusiasmante, o técnico português nunca deixou de valorizar o respeito e o profissionalismo no futebol, algo que procura levar para cada clube que representa.
"Não sou o melhor treinador do mundo, nem nunca serei. Mas sou um treinador que se dedica, que vive com profissionalismo, que se preocupa com os jogadores. Posso ser próximo ou distante, eles é que muitas vezes definem isso"
Para o seu crescimento enquanto treinador, Hugo Martins elege Luís Norton de Matos como uma das suas maiores influências. O cascalense acompanhou Norton de Matos em diversos projetos, e foi este que o encorajou a aceitar o seu primeiro desafio enquanto treinador principal.
"Trabalhar com o mister Norton de Matos para mim foi a maior escola que eu tive. É através dele que eu entro no profissionalismo e através dele que eu consigo desenvolver as minhas capacidades. Nós estávamos em Chaves, acabámos por sair em dezembro quando estávamos a um ponto do primeiro classificado...Às vezes há coisas que são difíceis de entender. Surgiu entretanto o convite do Casa Pia para treinar a equipa dos juniores. Eu falei com o mister Norton de Matos. Ele disse para ir, que era uma boa oportunidade para mim. 'É um projeto difícil e que te vai pôr à prova', disse ele. Acabou por ser uma viagem extraordinária".
Primeiro o Benfica, depois a Índia
A primeira grande experiência mediática de Hugo Martins ocorreu em 2017. O técnico orientava o 1º de Dezembro, clube que na altura militava no Campeonato de Portugal, quando o clube de Sintra recebeu o SL Benfica em jogo da terceira eliminatória da Taça de Portugal. Num jogo disputado no Estádio da Amoreira, no Estoril, os sintrenses venderam cara a derrota por 1-2, sofrendo o segundo golo já no período de descontos.
O embate com os encarnados foi a primeira experiência que Hugo Martins teve com futebol de Primeira Liga enquanto técnico principal. O treinador acredita nas suas capacidades de comandar uma equipa do principal escalão mas tem noção da grande concorrência existente. Independentemente disso, Hugo Martins não olha a patamares quando se trata de trabalhar.
"Muitos de nós não vamos ter essa oportunidade de treinar a Primeira Liga. Isso não quer dizer que eu não tenha capacidade ou que não me sinta capaz de treinar na primeira Liga. Aliás. Eu atuo como se estivesse a treinar na primeira Liga. Posso estar a treinar na Segunda Liga, na Liga 3, Campeonato de Portugal. A minha forma de trabalhar é sempre a mesma"
Nesse mesmo ano, Hugo Martins passou de Sintra para a Índia. Ao lado de Norton de Matos, o treinador português abraçou o projeto da seleção nacional sub-17 daquele país, equipa que iria participar no Campeonato do Mundo desse escalão, a realizar-se precisamente em solo indiano.
"Mais uma vez o mister Norton de Matos confiou-me a responsabilidade de o ajudar neste projeto. Havia a possibilidade de participar num Mundial, o que era um sonho. Fomos para um país em que há muitas crianças, onde o meu conhecimento iria ter uma preponderância muito maior. Obviamente que fator financeiro também pesou. Todas estas coisas ligadas fizeram-me aceitar e voltar a trabalhar com o Norton de Matos, que é a pessoa mais importante da minha carreira".
Hugo Martins contou como ele e os jovens jogadores indianos viveram o ambiente antes do primeiro jogo do Mundial contra os Estados Unidos. Apesar da sua experiência, nem o próprio técnico português ficou indiferente a toda aquela atmosfera.
"Quando fomos para o aquecimento antes do jogo com os Estados Unidos nós fomos um bocadinho mais cedo do que o habitual, precisamente para eles verem que o estádio já estava cheio, eram cerca de 60.000 pessoas. E quando entrámos fomos agradecer ao público houve ali uma descarga energética até da minha parte. Eu próprio estava a sentir algo também por causa deles e nós não sabíamos que reação é que eles iriam ter a jogar perante tantas pessoas e a jogar em casa e contra uma equipa muito forte, mas penso que eles se adaptaram muitíssimo bem. 'Vão jogar com os jogadores que já estão a jogar na Europa, que já têm outras outras condições. Mas que não olhem às pessoas'. E foi isso que os miúdos conseguiram fazer ao longo de toda a competição"
Hugo Martins deixou a Índia em 2018, isto após também ter passado pelo Dehli United. O técnico português acredita que o trabalho desenvolvido na seleção de sub-17 teve fortes repercussões no futebol indiano, e que duram até hoje.
"Se olharmos para aquele grupo de jogadores e para alguns desses jogadores hoje em dia, eles estão nas principais equipas da Índia. Praticamente 70, 80% dos jogadores estão na Índia a jogar na Superleague.
A forma como trabalhámos, aquilo que nós introduzimos como princípios na equipa, ajudou a que se olhasse para a formação como algo realmente importante. Para nós é uma grande satisfação olharmos para a seleção nacional e vermos lá três, quatro jogadores que vêm dessa geração. Quando lá chegámos não havia qualquer competição, hoje em dia, a Índia está muito mais bem preparada, precisamente porque lhes foi dada competição e acredito que a prestação da equipa, os torneios em que participámos e a evolução que os jogadores tiveram em 11 meses de trabalho, constituíram uma das primeiras pedras para hoje em dia olharem para para o futebol também como um veículo de ensino"
Regresso a Portugal e a pandemia
Pouco depois de regressar a Portugal, Hugo Martins acabou por rumar ao Sertanense, do Campeonato de Portugal, onde esteve pouco mais de uma temporada. Isto porque, em 2019/2020, o técnico assumiu o comando do Real Sport Clube, que levou a uma luta intensa pela subida à Liga 3.
Foi durante essa intensa luta pela subida que o futebol português foi assolado pela pandemia de Covid-19. O treinador sublinhou que foram tempos muito difíceis para si e para os seus jogadores, mas deixou ainda palavras de apreço para a postura da direção do clube nesse período.
"Foram tempos muitos difíceis, dramáticos até, estávamos a fazer um campeonato excelente. Foi bastante penalizador para mim e para os jogadores. Nós fazíamos zoom todos os dias, fazíamos treino, tentávamos ocupar os jogadores praticamente todos os dias. Foi o grupo com quem eu mais me identifiquei. Há que realçar também o comportamento que o Real SC teve na altura pois nunca falhou qualquer compromisso quer com a equipa técnica, quer com os jogadores"
Apesar disso, Hugo Martins não escondeu o seu descontentamento em relação à forma como a Federação Portuguesa de Futebol lidou com a situação dos campeonatos nacionais e as consequentes subidas e descidas.
"Quando se dá a paragem do campeonato começam-se a criar dúvidas. Vai haver campeonato? Decidiram que só a primeira Liga que é que competia. Depois decidiram que o Vizela e o Arouca subiam porque alguém decidiu que seriam eles a subir. Foram períodos de muita instabilidade para mim e para os jogadores, porque queríamos competir a todo custo, porque acreditávamos naquilo que estávamos a fazer. A Federação, por outro lado, alimentou a ideia de que iríamos competir, que iriam fazer uma 'liguilha' na cidade do futebol com as equipas isoladas. Nada disso foi feito e para nós foi terrível. Por motivos que não controlamos, não conseguimos o nosso objetivo"
De Chipre a Moçambique é um pulo
Após passagens pelo GD Loures, Cova da Piedade e CF Belenenses, Hugo Martins voltou a embarcar em nova aventura fora do país. O técnico rumou ao Chipre para orientar o PO Xylotymbou, da segunda divisão. Para este novo desafio, o treinador ia com ideias claras relativamente aos objetivos.
"Felizmente a nossa profissão permite-nos, não só conhecer outras culturas, como também levar aquilo que é a nossa metodologia e aquilo que são os pilares mais fortes do treinador português. Foi aquilo que nós fizemos no Chipre. Levei 11 jogadores portugueses, fui para um país diferente, para uma liga onde se joga um futebol mais direto; contudo implementei as minhas ideias, que são totalmente opostas ao futebol que se pratica lá e consegui ter resultados. Ainda tenho várias pessoas com quem falo no Chipre e elogiam a equipa. 'Nunca vimos nenhuma equipa a jogar este futebol, a forma como vocês jogavam na segunda liga. Nunca houve ninguém que tivesse essa coragem', dizem. Aliás quando saí, devido a problemas financeiros, nós éramos o melhor ataque".
A experiência mais recente de Hugo Martins enquanto treinador deu-se nos Black Bulls de Moçambique. O convite do clube moçambicano acabou por concretizar o sonho do técnico em treinar um emblema africano, sonho ao qual se juntaram outros fatores que tornaram esta uma oportunidade imperdível.
"Este convite surgiu através de uma pessoa que indicou o meu nome ao presidente. Pessoalmente tinha o desejo de trabalhar em África. Tinha estado há alguns anos na Guiné-Bissau e foi um país que eu adorei, até porque já tinha trabalhado com muitos jogadores guineenses e sentia vontade de tentar perceber de onde é que vinha aquele talento. Foi um amor à primeira vista. No caso dos Black Bulls foi juntar o útil ao agradável. É um clube que tem boas condições de trabalho a todos os níveis e, para além disso, também luta por títulos. Houve aqui uma conjugação de fatores que proporcionaram a minha ida para o clube. Tivemos duas ou três reuniões com a direção e pronto"
Apesar de ter um plantel que não construíra, o treinador português fez um bom arranque ao comando da equipa, conseguindo sete vitórias em oito partidas e assumindo desde logo a liderança do campeonato nacional, isto para além da conquista do campeonato provincial de Maputo.
"Quando chegámos apanhámos um plantel já construído, onde não tivemos qualquer responsabilidade na construção do mesmo, já preparado para jogar mas não no nosso sistema porque era um plantel construído com seis centrais, não tinha extremos, portanto obrigava-nos a jogar de uma determinada forma. Aí, tivemos nós que adaptar ao que já tínhamos e só depois pudemos dar o nosso cunho pessoal"
Mesmo com este bom começo, a equipa era constantemente alvo de críticas por parte do seu presidente. Para além disso, e de acordo com Hugo Martins, a larga vantagem no campeonato acabou por criar alguma soberba na direção, que acabou por depauperar o plantel no mercado de inverno.
"Mesmo nos melhores períodos da equipa havia uma crítica constante à forma como nós jogávamos. Éramos a melhor defesa e o melhor ataque, mas mesmo assim não era suficiente para o presidente.
Depois, houve um deslumbre por parte dos dirigentes do clube. Quando íamos com vários pontos de vantagem e quando reabre o mercado vimos os rivais a reforçarem-se bem e os Black Bulls praticamente não se reforçaram, e quando o fez não foi para as posições que nós achávamos que eram mais necessitadas. Para além disso ainda perdemos muitos jogadores importantes da equipa"
O crescente distanciamento entre direção e equipa técnica levou à saída de Hugo Martins após apenas quinze jogos, e imediatamente após um empate a zero no campeonato que retirou os Black Bulls da liderança.
"Havia distanciamento entre aquilo que é a minha visão desportiva e a do clube. Para além disso nunca senti uma valorização do meu trabalho, e isso torna-se complicado de gerir. Estamos longe da família e não sentimos uma palavra de conforto relativamente ao trabalho que se faz. Sabia que ao menor deslize ia haver oportunidade de falarmos e provavelmente o desfecho ia ser a saída. Hoje em dia há muita gente no futebol que não gosta de futebol, vê o futebol apenas como um meio para ganhar dinheiro. E não tem esta paixão. A maior dificuldade hoje em dia dos treinadores é essa: muitas das vezes as pessoas que estão à frente dos clubes não percebem nada de futebol. Percebem os resultados. Há pouca cultura hoje em dia, naquilo que rodeia o treinador, e cada vez mais estamos numa posição fragilizada."
Embora a estadia em Moçambique tenha sido interrompida, Hugo Martins ficou impressionado com a capacidade de trabalho e dedicação dos jogadores moçambicanos perante as condições precárias com as quais se deparavam todos os dias.
"O jogador moçambicano é um jogador de trabalho, tem uma pré-disposição tremenda para a competição. Treinam como leões, jogam como leões, trabalham no limite. Fazem viagens muito difíceis que um jogador europeu jamais faria para ir fazer um jogo futebol. Acordávamos muitas vezes às quatro da manhã para apanhar o avião às seis, fazer a viagem de avião de duas ou três horas para depois ter que andar de autocarro em estradas sem condições para no dia a seguir ainda ir jogar. E muitas vezes íamos jogar em sintéticos que nem borracha tinha, relvas altíssimas ou um capim de horrível qualidade. Tem que se dar o maior reconhecimento a estes jogadores".
Perante estas características, Hugo Martins não ficou surpreendido com a recente qualificação da seleção nacional moçambicana para a Taça das Nações Africanas.
"Em primeiro lugar, quero dar os parabéns ao treinador Chiquinho Conde, porque sentia-se alguma contestação ao seu trabalho. Há 12 anos que Moçambique não ia à CAN, e o Chiquinho teve essa capacidade. E a mim deixa-me extremamente satisfeito saber que cinco, seis jogadores com os quais o trabalhei fizeram parte dessa caminhada.
Portanto, para mim é e foi um trabalho muito bem conseguido e os jogadores estão de parabéns"
Voltar a treinar em Portugal?
De regresso a Portugal, Hugo Martins olha também atentamente para o futebol jogado no nosso país. O técnico enfatiza a evolução que algumas equipas e treinadores fizeram no seu estilo de jogo e que mudaram a maneira como as equipas preparam as partidas.
"Quando estava na primeira liga sentia que as equipas de meio de tabela tinham alguma dificuldade a jogar em casa porque as equipas que iam jogar fora davam a iniciativa de jogo, um bloco médio baixo e hoje em dia já não é assim. Nós vemos um Famalicão, vemos um Moreirense a jogar. Estas equipas muitas vezes já estão a condicionar a primeira fase de construção de equipas como o Porto ou Sporting. Há claramente uma mudança de paradigma, já não há aquela estratégia do 'vamos jogar fora fechadinhos cá atrás'. Mesmo que seja no estádio da Luz, acho que já há mais coragem porque também há melhores jogadores e melhores condições de trabalho"
Perante esta conjuntura, o treinador levanta a questão sobre a aparente incapacidade da Liga conseguir exportar a marca do campeonato português para o estrangeiro. O técnico apresenta uma razão muito simples para este cenário.
"A nossa liga tem bons treinadores, tem bons jogadores, mas em termos de produto não é muito vendável. Porque um produto que tem bons jogadores e bons treinadores deveria conseguir, não só exportar esses jogadores e treinadores, como também a nossa própria competição. Como é que nós não conseguimos valorizar mais o nosso campeonato? Porque olhamos muito para aquilo que não controlamos, que é o árbitro, é quase cultural. Acho que nós aqui nos refugiamos muito naquilo que é as arbitragens, e os conflitos e os problemas, e isso retira credibilidade ao nosso campeonato".
Mesmo atento ao futebol que por cá se joga, Hugo Martins não tem pressa em regressar ao ativo. O treinador português vai aproveitar para recarregar baterias e passar tempo com a família, não deixando, todavia, de acompanhar os campeonatos nacionais.
"Curiosamente, mal cheguei de Moçambique tive um convite, mas não pude aceitar. Preciso de descansar, preciso de estar com o meu filho, que é a coisa mais importante da minha vida. Quero dar-lhe algum tempo. Também não me sentia com energia e condições emocionais para começar novamente. Para além disso ainda tenho de reconstruir a minha equipa técnica. Vou aproveitar para refletir, observar, e ver jogos. Não tenho pressa nenhuma em regressar. Não sou um treinador que deseja mal aos outros, que fica à espera para entrar; sei que há colegas meus que o fazem, mas eu não. Não desejo mal a ninguém nem àqueles que me querem mal e que o fazem a sorrir. Assim que alguém achar que eu sou a pessoa indicada eu estarei pronto para o desafio"
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