Foi com um polémico penalti sobre Sergio Ramos, convertido pelo próprio e com um golo de Modric nos descontos que o Real Madrid ultrapassou o Barcelona em número de triunfos no clássico dos clássicos do futebol espanhol. No passado sábado, os merengues bateram os 'culés' por 3-1, no jogo 245 entre ambos e passaram a ter 97 vitórias contra 96 do rival.
Mas este não é apenas mais um clássico de futebol. É um jogo de poderes, de disputas políticas. É um dos vários palcos das reivindicações independentistas da Catalunha, e também um momento de afirmação do centralismo de Madrid.
Em diversas ocasiões, jogadores, técnicos e dirigentes do Barcelona não tiveram problemas em expressar a sua opinião e apoiar as ideias independentistas da Catalunha. Piquè, central do Barcelona, e Pep Guardiola, antigo treinador da formação blaugrana - neste momento treina o Manchester City - já se mostraram a favor da independência da região. Por outro lado, jogadores como Sérgio Ramos já vieram defender a união da Nação, opondo-se contra as ideias de independência que nos últimos anos ganharam mais força na Catalunha.
Real Madrid-Barcelona: imagens de duelos no 'El Clásico,' disputado sempre no limite
Real Madrid fundado por… catalães. Barcelona, um símbolo da Catalunha independentista
'Més que un club' (Mais que um clube) é o slogan do Barcelona. Fundado em 1899 por Joan Gamper, um suíço que emigrou para a Catalunha e que tinha jogado no FC Zurique (que também ajudou a criar), o Barcelona rapidamente tornou-se num dos símbolos da Catalunha, principalmente em 1914 quando o clube substituiu o castelhano pelo catalão como língua oficial. É a afirmação dos valores da região, na luta contra o centralismo. E essa afirmação catalã está presente nas suas cores, no seu lema, no seu escudo.
Curiosamente o Real Madrid foi fundado por dois irmãos nascidos na Catalunha. A 06 de março de 1902, Juan Padrós e Carlos Padrós criaram o Madrid Foot-Ball Club, que viria mais tarde a ser rebatizado de Real Madrid Club de Fútbol. O 'Real' seria acrescentado em 1920, quando foi concedido autorização pelo rei Alfonso XIII.
O primeiro embate entre estes dois colossos do futebol mundial aconteceu em 1902, na Copa de la Coronación (atual Taça do Rei) e foi ganha pelo Barcelona por 3-1.
A verdadeira rivalidade entre Barcelona e Real Madrid terá começado em 1943, de acordo com vários artigos da imprensa espanhola, embora não haja dados que permitam afirmar com certeza o início desta disputa. A Guerra Civil espanhola tinha deixado o Barcelona em crise, com a perda de milhares de sócios. Em 1936 o clube tinha perdido o seu presidente: Josep Sunyol foi capturado por tropas franquistas e, juntamente com outros companheiros de viagem, foi fuzilado, sem qualquer julgamento.
Os nacionalistas ganhavam vantagem no campo de batalha e, após conquistarem a Catalunha, houve uma repressão cultural, com a proibição dos símbolos de identidade catalã na região. O clube foi refundado e passou de Futbol Club Barcelona para Barcelona Club de Fútbol, em castelhano, o símbolo foi mudado.
Nesse ano de 1943, Real Madrid e Barcelona enfrentaram-se na meia-final da Taça do Rei em Madrid, na capital espanhola. De acordo com as crónicas da altura, antes do jogo, o director da polícia política visitou o balneário do Barcelona, juntamente com a equipa de arbitragem e lembrou aos jogadores do emblema catalão a 'generosidade' do regime que 'perdoara' a falta de patriotismo do clube durante o conflito. Resultado: o Real Madrid venceu por 11-1, naquela que é a maior goleada em jogos entre as duas formações.
A relação e rivalidade entre os dois clubes teria novo capítulo nos anos 50, com Alfredo di Stéfano, desviado do Barcelona para o Real Madrid, em 1953, com ajuda do governo de Franco. O Barcelona negociou o craque com o River Plate, onde jogava Di Stéfano mas o Real Madrid negociou-o também com o Millonarios, da Colômbia, que detinha direitos desportivos do jogador.
Com o Barcelona a ter a quota de estrangeiros preenchida, o clube chegou a acordo com o Real Madrid, que receberia Di Stéfano, durante duas épocas, sendo que depois o argentino rumaria a Catalunha nas duas épocas seguintes. Mas a direção blaugrana, na altura, quebrou o acordo e resolveu aceitar 4,4 milhões de pesetas - o clube passava por dificuldades financeiras - por aquele que viria a ser um dos melhores futebolistas de sempre. A contratação de Di Stéfano só foi possível porque nesse mesmo ano o Governo de Franco assinou um despacho a revogar a lei que limitava a contratação de jogadores estrangeiros, o que permitiu a incursão do argentino, depois espanhol, nos merengues, onde viria a transformar-se numa lenda.
50 anos depois seria um português a abrir caminho para uma nova 'guerra' entre os dois emblemas. Luis Figo tornou-se em 'persona no grata' na Catalunha ao trocar os culés pelo Real Madrid em 2000. Uma das transferências mais polémicas da história.
Alguns números e estatísticas dos duelos entre Real Madrid e Barcelona
Cabeças de porco a voar em direção ao português mais odiado da Catalunha
São poucos os jogadores que tenham trocado diretamente o Real Madrid pelo Barcelona ou vice-versa. E quando aconteceu, acabou sempre em tumulto. Primeiro foi Alfredo Di Stéfano', 'roubado' pelo Real Madrid ao Barcelona com ajuda do Governo de Franco. Anos mais tarde, chegaria a traição de um português: Figo era ídolo em Camp Nou mas decidiu que era hora de mudar de ares, em 2000. Ia provocando uma guerra. Mas Figo sabia ao que ia: "Para o público será um belo espetáculo. Quem vai sofrer sou eu, porque é como estar na pele de um assassino", disse, antes do encontro da 6.ª jornada da Liga espanhola, entre 'blancos' e 'culés'.
21 de outubro de 2000. Nesse dia, jogou-se 'El Clásico' mais ruidoso da história do Barcelona vs Real Madrid. Foi o primeiro de Luís Figo pelo Real Madrid em Campo Nou. Um jogo tenso, disputado num ambiente de quase guerra. O Camp Nou estava cheio, quase 98 mil, todos a assobiar Luís Figo. O ruído era tanto que os jogadores tinham dificuldades em ouvir o apito do árbitro Alfonso Pérez Burrull. Nas bancadas havia cartazes com frases de ódios, queimavam-se camisolas de Figo. Assobios, insultos, gritos de 'Pesetero'. Um inferno.
No relvado voaram telemóveis, garrafas de whisky, pilhas, e até a cabeça de um leitão assado, em direção a Figo. O português passou a ser o marcador dos cantos do Real Madrid e sempre que se aproximava da bandeirola, era um pesadelo. Michel Salgado tinha desistido dessa tarefa.
"No mundo inteiro, nunca um desportista teve um ambiente como aquele, com tanta gente contra. Mas, ao mesmo tempo, sentia-me confortável com a pressão porque me mantinha desperto e concentrado. O pior foi o resultado, porque perdemos", disse o luso, ao site espanhol 'Grada 360'.
Quem vai sofrer sou eu, porque é como estar na pele de um assassino
O ambiente também afetou muito os jogadores do Real Madrid, que nunca tinham passado por algo semelhante. Luis Enrique e o português Simão Sabrosa fizeram os golos culés, mas foi Real Madrid a sagrar-se campeão no final do campeonato.
O ambiente tenso também se vivia nas ruas de Barcelona. Foi reforçado o dispositivo de segurança em torno do Real Madrid, algo nunca antes visto. Quando o autocarro dos merengues chegou ao estádio, foram atiradas pedras que partiram alguns vidros do mesmo. O jogadores refugiaram-se no corredor do autocarro, antes de entrar no estádio.
A história da traição de Figo começou num desentendimento com o presidente do Barcelona na altura, Joan Gaspart. O Real Madrid estava em eleições e o candidato Florentino Pérez tinha prometido contratar o craque principal do Barcelona. Se não conseguisse, pagaria a quota a todos os sócios do Real Madrid. José Veiga, empresário do jogador na altura, reuniu-se com Florentino Pérez e ficou acordado os trâmites da transferência, com o Real Madrid a bater a cláusula de rescisão do português, transformando-o no jogador mais caro de sempre. Nunca alguém tinha pago 60 milhões de euros por um jogador. O Barcelona nada podia fazer.
A saída de fico apanhou todos de surpresa na Catalunha. O português era uma referência no balneário, um dos melhores, se não, o melhor jogador do plantel e tinha acabado de se mudar para o arquirrival Real Madrid. Quando começaram os rumores da possível transferência (Figo queria um novo contrato que valorizasse a sua influência em campo, Gaspart, o presidente, não era da mesma opinião), ninguém no clube catalão acreditou que fosse possível. Abelardo, amigo de Figo, disse ter falado com o português durante o Euro2020 e este lhe tinha dito que não deixaria o Barcelona.
Mas deixou. E a Catalunha nunca o perdoou.
O 'clásico' mais triste da história
Em 1968, o clássico entre Barcelona e Real Madrid jogou-se 48 horas depois da morte de Julio César Benítez, jogador do Barcelona. Benitez era uruguaio, defesa que se destacava na marcação e que travou com Paco Gento um dos grandes duelos do futebol espanhol nos anos 60. Mas a 06 de abril de 1968, faleceu, de morte súbita, após uma indisposição. Tinha 27 anos.
A 02 de abril, deixou o treino da equipa, indisposto. O treinador, Artigas, mandou-o ao médico da equipa que o aconselhou a repousar em casa. Depois de um dia de descanso, voltou aos treinos, mas viria a sentir-se mal novamente, com o seu estado de saúde a agravar-se. O jornal 'Marca' relata que na altura suspeitava-se que Benitez teria uma infeção intestinal.
Depois de ter estado internado num Hospital da Cruz Vermelha, receberia alta e voltaria à sua residência, onde faleceu no dia 06 de abril, depois de dias de febre e alucinações. Os médicos escreveram que terá morrido devido a uma septicemia - infecção generalizada. Em Barcelona comentava-se que a sua morte se devia ao facto de ter comido mexilhões estragados.
No dia seguinte, seria enterrado, com os jogadores do Barcelona a levarem o seu caixão até ao cemitério, num funeral onde compareceram jogadores do Real Madrid, Barcelona e Espanyol, o rival dos 'culés' na Catalunha.
O jogo entre Barcelona e Real Madrid, que estava marcado para o dia 06, foi disputado dois dias depois, a 08 de abril. Terminou empatado a uma bola, o que deixou o Real com uma mão no título, já que ficaram a faltar apenas duas rondas e tinha três pontos de vantagem (na altura cada vitória valia dois pontos).
Jogos e curiosidades que marcaram a história dos 'clásicos'
1968: Clássico das garrafas
Barcelona e Real Madrid mediram forças nesse ano de 1968, no Santiago Bernabéu, na final da Taça do Rei, na altura conhecida como Copa do Generalíssimo (ganho pelos culés). Os catalães venciam por 1-0 (autogolo de Zunzunegui) quando o árbitro não marcou duas supostas grande penalidades a favor dos merengues, por faltas sobre Amancio e Serena. Revoltados, os adeptos do Real Madrid começaram a atirar garrafas de vidro para o campo, espalhando o caos no relvado, com vários pedaços de vidro das garrafas partidas. Com este episódio, passou a ser proibido a entrada de garrafas de vidro nos estádios espanhóis.
1990: Árbitro pisado e Hugo Sanchez agarrado aos genitais
Jogo tenso e muito violento em 1990. A partida da Supertaça de Espanha ficou marcada por momentos feios. O búlgaro Hristo Stoichkov perdeu a cabeça e pisou Urizar Azpitarte, árbitro do jogo. O Real Madrid venceu por 1-0 e no final, Hugo Sanchez celebrou a vitória, de frente para os adeptos do Barcelona, agarrado aos genitais.
1993/1995: Michael Laudrup - manita aqui, manita ali
Michael Laudrup marcou o futebol dinamarquês. Fez parte daquela 'Dinamáquina', como ficou conhecida a seleção da Dinamarca que disputou os Mundiais de 1986 e 1990. Laudrup fez parte do 'Dream Team' montado por Johan Cruyiff no Barcelona mas depois mudou-se diretamente para o rival Real Madrid. Curiosamente, o craque dinamarquês esteve em duas goleadas: na do Barça ao Real em 1993/94, onde brilhou Romário com um hat-trick, um deles depois de aplicar uma vírgula a Alkorta, drible que os espanhóis haveriam de batizar como 'cola de vaca'; na do Real ao Barça no ano seguinte, com Ivan Zamorano a marcar três dos cinco golos merengues. O dinamarquês tinha assistido duas vezes Romário na primeira goleada e deu um golo a marcar a Zamorano na segunda 'manita'.
2001-2002: Real a 'matar a fome' de 19 anos
O Real Madrid chegou a Camp Nou para tentar lutar contra a história recente: não vencia em casa do rival há 19 anos. Mas os golos de Zidane e Steve McManaman deram a vitória por 2-0, na primeira-mão das meias-finais da Liga dos Campeões. Na segunda-mão empataram e garantiram um lugar na final da Champions, que acabariam por vencer frente ao Bayern Munique.
2005-2006: um rival aplaudido de pé
O clássico de 2005-2006 (0-3) no Bernabéu foi memorável para Ronaldinho Gaúcho. O brasileiro fez um jogaço, deu um recital de futebol e marcou dois golos fantásticos, numa equipa treinada por Frank Rijkaard, que tinha nomes como Deco, Eto’o, Puyol, Xavi e Messi, um jovem de 18 anos que já dava muito que falar. Do outro lado havia Casillas, Roberto Carlos, Zidane, Beckham, Raúl e Ronaldo Fenómeno. Depois do segundo golo, Ronaldinho foi aplaudido pelos adeptos do Real Madrid. Nunca visto! Nesse ano venceu a Bola de Ouro para Melhor do Mundo.
2006-2007: o primeiro hat-trick de Messi
Marcar três golos num clássico entre Real e Barça não é para qualquer um. Messi está na lista dos que o conseguiram em duas ocasiões, a primeira, com apenas 19 anos. O jogo terminou empatado a três bolas e o mundo do futebol começava a prestar mais atenção ao novo fenómeno chamado Lionel Messi.
VIDEO: Veja os 26 golos de Messi ao Real Madrid
2008-2009: Afirmação de poder catalão em pleno coração de Madrid
Em 2009 o Real Madrid recebeu uma das melhores equipas da história do futebol. Aquele Barcelona de Pep Guardiola parecia ser uma equipa imparável, em qualquer estádio. O Real Madrid, bicampeão espanhol, tinha visto o rival apostar num jovem técnico que tinha orientado a equipa B na época anterior e que promoveu alguns jovens da 'cantera' na equipa principal.
Nesse 02 de maio, os blaugrana chegaram ao Bernabéu com quatro pontos de vantagem na liderança e saíram de lá com sete, depois de um recital de afirmação de poder: 6-2 foi o resultado, com Xavi participar em quatro golos. O Real até marcou primeiro por Higuain, mas a estratégia de Guardiola destruiu o Real Madrid: a colocação de Messi como falso 9 foi a chave do jogo já que nunca o Real conseguiu arranjar formas de travar o ataque blaugrana. E só não foram mais porque Guardiola descansou alguns elementos essenciais, já que na semana seguinte jogaria a segunda mão das meias-finais da Champions, em Stamford Bridge.
2011-2012: O dedo de Mourinho no olho de Tito Vilanova
É uma das imagens mais marcantes da história do clássico dos 'clássicos'. Na Supertaça de Espanha, Mourinho, então treinador do Real Madrid, desentendeu-se com o banco do Barcelona, depois de uma entrada feia de Marcelo sob Cesc Fàbregas. Na troca de argumentos e insultos, Mourinho acabou por meter um dedo num dos olhos de Tito Vilanova, técnico-adjunto dos blaugrana, falecido em 2014.
2011-12: 'Calma, o Cristiano Ronaldo está aqui!'
O Real Madrid chegou a Camp Nou com quatro pontos de vantagem na liderança, quando faltavam cinco jornadas para o final da Liga. Não perder era crucial. O jogo estava empatado 1-1, com o Barcelona a tentar passar para a frente, mas seria Cristiano Ronaldo a resolver: marcou o 2-1 e festejou a pedir calma aos adeptos. 'Calma, eu estou aqui!', numa das imagens que faz a história dos clássicos entre os dois clubes.
2010-2011: Guardiola vs Mourinho e uma 'manita' histórica
José Mourinho tinha sido contratado pelo Real Madrid para tentar travar o percurso vitorioso do Barcelona, de Pep Guardiola. Na 13.ª jornada da Liga, o Real visitava Camp Nou, num jogo que decidia a liderança da prova. O Barcelona comemorava 111 anos de história e lotou o Camp Nou com quase 100 mil pessoas. Este seria o primeiro duelo entre Cristiano Ronaldo e Messi da temporada. O domínio dos catalães foi tal que acabou com uma estrondosa vitória por 5-0, com golos de David Villa (2), Xavi, Pedro e Jefreen. A partida terminou com Piquè a festejar com a mão aberta, mostrando os cinco dedos, o mesmo número de golos do encontro. O Real aumentava para cinco os jogos sem vencer o rival Barcelona.
Essa luta entre Real Madrid e Barcelona não se vê apenas nos relvados. Os dois colossos do futebol mundial costumam lutar pelos melhores jogadores. Di Stéfano tinha tudo acertado com o Barcelona mas acabou no Real Madrid; Johan Cruijff tinha sido negociado pelo Real Madrid mas, num ato de rebeldia, assinou pelo rival Barcelona; os merengues mostraram interesse em Neymar e até mantiveram conversas com o Santos mas o craque brasileiro acabou por mudar-se para a Catalunha.
E assim irá permanecer nos próximos anos, tendo em conta a grandeza dos dois clubes e aquilo que representam: o Real Madrid, o centralismo, a ideia de uma Espanha unida; o Barcelona, símbolo maior da Catalunha na luta contra o poder central e um dos objetivos de afirmação dos valores da região.
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