Nos eSports, tão depressa as tecnologias se harmonizam para criar jogos envolventes e memoráveis, como se conjugam para desenvolver formas de os estragar. As "cheats", como se diz na língua inglesa, continuam a ser difíceis de filtrar, mas para que as competições corram como devam correr, os jogos têm de ser controlados ao pormenor, para garantir que são apenas as habilidades de cada um que controlam o ritmo do jogo.
Marcel Menge, vice-presidente sénior da Play & Platforms, da ESL (European Sports League), entrou para a empresa como árbitro digital e compara o ofício com o dos juízes das partidas dos desportos convencionais. Não do ponto de vista da técnica, mas pela importância que o papel desempenha no decorrer dos jogos e no respeito pelas regras.
Em competição, o trabalho de Menge consiste em monitorizar os movimentos dos jogadores. Neste período tem acesso a cinco ecrãs, todos eles com pontos de vista diferentes sobre os participantes, para garantir que não há comportamentos estranhos. Os ratos e os teclados não podem permitir a instalação de software e as ligações à rede onde decorre a competição têm todas de ser devidamente identificadas.
Com tantos cuidados, Menge dificilmente admite que uma situação de batota passe despercebida. "Com tantos espectadores ao vivo, mais os que assistem às partidas online, que podem até alterar a vista entre a perspetiva dos vários participantes, há olhos suficientes em todas as situações para garantir que alguma coisa se passa, quando alguma coisa se passa", disse, em conversa com o portal The eSports Observer.
Mas nem este cenário de vigilância assusta os mais audazes. Na verdade, existem vários casos de batota nos eSports, mesmo nos mais altos níveis de competição. Em 2008, na ESL Pro Series Alemanha, um jogador foi particularmente analisado pelo staff da organização. Na altura, este tinha jogado de forma sensacional na internet, tendo tido depois uma peformance muito pobre ao vivo. A análise da ESL, que na altura era feita com base em gravações dos jogos, determinou que este estava a usar dois tipos de cheat: um aimbot, que serve para automatizar a pontaria do jogador, e um wallhack, que torna as paredes dos mapas transparentes, facilitando a localização dos adversários. O jogador foi banido durante dois anos, mas não sem antes contestar a decisão da ESL em tribunal. Na altura, a justiça não estava equipada para analisar os vídeos, mas decidiu que as medidas tomadas pela empresa foram suficientes para justificar a suspensão.
Menge reconhece que o sistema não era o melhor. Atualmente, a tecnologia de deteção de batotas é muito mais sofisticada. "Há algoritmos anti-batota e tecnologia de machine learning do lado do servidor, que servem para analisar situações que pareçam menos normais". O sistema é um salto qualitativo no que toca aos métodos de deteção de batotas nos videojogos, mas ao mesmo tempo que este é pródigo no reconhecimento de cheats mais comuns, que se vendem online por entre 20 a 35 dólares, a eficiência cai quando um jogador recorre a software personalizado, cujo preço pode chegar aos milhares. Nestes casos, a análise mais eficaz acontece depois dos jogos, quando um grupo de especialistas se senta para analisar os ficheiros de jogo de um competidor.
Online, os cuidados não são tão robustos, até porque se tivermos em conta o número diário de jogos que acontecem na rede, percebemos facilmente que seria impossível alocar os mesmos recursos a todos eles. O Valve Anti-Cheat System é uma das alternativas digitais que serve o propósito nesse domínio. Funciona com centenas de títulos disponíveis na Steam, mas o objetivo deste software é gerir a qualidade da experiência de jogo das comunidades afetas a cada um dos títulos. Menge sublinha que, neste segmento, a atitude consiste em "preservar a experiência de quem joga justo" e não em punir quem utiliza ajudas ilegais.
"As cheats são as maiores inimigas das editoras de videojogos e dos seus criadores", diz. E talvez seja por isso que cerca de um quarto do orçamento total da ESL seja utilizado para sustentar medidas anti-batota. Afinal, quando os prémios em jogo chegam a atingir a casa das centenas de milhar, todo o cuidado é pouco para garantir que tudo corre dentro da normalidade.
Atualmente, os esforços da empresa contra o mercado das cheats já atinge contornos cinematográficos, com agentes infiltrados nos circuitos de divulgação de cheats para que lhes possam aplicar técnicas de engenharia reversa. A prática é levada a cabo para que empresas como a ESL possam rapidamente formular soluções capazes de detetar as novas ameaças do mercado, ainda antes de estas se tornarem populares.
Por esta altura, praticamente todos os jogos têm uma lista de boas práticas associada. As regras estabelecidas não servem para ser quebradas. E algumas dessas listas são mantidas em sigilo. Na hora de aplicar punições, as empresas da indústria trabalham com a eSports Integrity Coalition, uma associação sem fins lucrativos, estabelecida em 2015, que serve de matriz aos princípios éticos da indústria. De acordo com o grupo, existem quatro grandes ameaças à integridade nos eSports: as cheats, ataques informáticos às redes do adversário, os resultados combinados e o doping. Todos estes princípios estão estabelecidos num Código de Conduta, num Código Anti-Corrupção e num livro de Políticas Anti-Doping.
Os documentos não têm valor de lei, mas são essenciais na construção de linhas orientadoras para a indústria, especialmente porque a ESIC mantém um diálogo aberto com todos os interessados em melhorar o contexto de competição das suas comunidades.
Um dos casos de batota mais mediáticos da história dos eSports aconteceu em 2018. O visado foi Nikhil “forsaken” Kumawat, um jogador de Counter-Strike que foi apanhado a utilizar cheats na eXTREMESLAND 2018, uma competição presencial que juntou alguns dos melhores jogadores de CS. O participante não foi discreto na utilização do software. As câmaras captaram-no a solicitar uma alteração no seu PC de jogo e isso despontou suspeitas na organização. Para o público, isto foi suficiente para o considerar culpado, mas na mais alta esfera de decisão, as punições não se emitem com base em pareceres populares. Para declarar “forsaken” culpado, foram precisas provas tangíveis de que o jogador tinha, de facto, feito batota. Foi feita uma investigação. Analisaram-se os jogos anteriores do jogador e os observadores não tiveram dúvidas; cinco anos de suspensão foram o resultado.
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