Durante 27 anos, Tifanny Abreu 'morreu aos poucos' no seu interior, pois sentia-se uma mulher presa no corpo de Rodrigo, um potente jogador brasileiro de voleibol, cuja carreira profissional na Europa não diminuía a dor que o consumia. Até que decidiu deixar tudo para ser, finalmente, uma mulher.

Depois que deixou de ser Rodrigo, Tifanny Abreu pensou que nunca mais voltaria aos pavilhões para fazer o que mais gosta: jogar voleibol. Mas no ano passado, em 2017, tornou-se na primeira transsexual a competir na Superliga feminina do Brasil. Agora quer ser a primeira transsexual a ingressar na Câmara dos Deputados, em Brasília.

O lema da sua campanha é "Por que não?"

"'Matei-me por dentro' durante 27 anos. Queria fazer esta transição quando tinha 12, 13 anos porque desde criança já sabia que era uma mulher. Mas a nossa falta de informação, a nossa falta de hospitais, a nossa falta de orientação... Muitas [transsexuais] acabam por não aguentar a pressão da sociedade que oprime tanto e acabam por se suicidarem", conta Tifanny à AFP no terraço de um hotel de São Paulo, entre um ato eleitoral e um momento de lazer.

Tifanny Abreu, transsexual, atleta e candidata às eleições brasileiras elo MDB
Tifanny Abreu, transsexual, atleta e candidata às eleições brasileiras elo MDB

E Tifanny Abreu conhece muito bem o problema do suicídio. Aguentou até 2012, quando uma depressão esteve a ponto de asfixiá-la e decidiu libertar-se, embora isso a obrigasse a largar tudo. Na altura, era um forte atacante de voleibol cujo talento a tinha levado a jogar também fora do Brasil, em Portugal, França, Espanha, Bélgica e Holanda. Em Portugal, jogou no Esmoriz na época  2008-09.

"Deixei uma equipa onde era o segundo melhor pontuador da liga [de segunda divisão na Bélgica] para começar uma transição. Não podia viver mais naquele corpo, não podia mostrar que era um homem, quando na verdade, sentia-me uma mulher. Já não aguentava sentir vergonha de mim mesma", conta a agora jogadora da equipa do Bauru, clube do interior de São Paulo.

Rodrigo Abreu, Tifanny Abreu submeteu-se à sua primeira operação cirúrgica, após meses a tomar hormonas. Depois disso, fez mais cirurgias - a última em maio de 2018, em Espanha para afinar as suas formas físicas -, que ela exibe como uma vitória.

Esse complexo caminho que teve que percorrer sozinha, motivou Tifanny Abreu a entrar na política. Há alguns meses nem sequer sabia o que era o MDB, o poderoso partido de centro-direita pelo qual se candidata a deputada.

Prestes a completar 34 anos e profundamente religiosa, Tifanny sente que a sua experiência pode ajudar o Brasil, o país onde mais se matam transsexuais no mundo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra). Em 2017 foram mortas 179 transsexuais no Brasil.

"Quando recebi essa proposta do Brasil, para vir para cá, muitas pessoas diziam-me para não vir porque o Brasil é um país que discrimina muito, um país que mata, mas graças a Deus, estamos a mudar. E a mudar melhor", atira.

O regresso ao Brasil foi uma "bomba"

Depois de dez anos na Europa, o Bauru contratou Tifanny Abreu, após a mudança na legislação do Comité Olímpico Internacional (COI), que permite que atletas transsexuais participem nas ligas femininas se a sua testosterona estiver abaixo de 10 ng/L (10 nanogramas por cada litro de sangue). A de Tifanny, após anos de tratamento, estava nos limites permitidos. E ela aceitou o desafio.

Tifanny Abreu, transsexual, atleta e candidata às eleições brasileiras elo MDB
Tifanny Abreu, transsexual, atleta e candidata às eleições brasileiras elo MDB

A sua chegada ao voleibol feminino brasileiro foi acompanhada por várias denúncias sobre as supostas vantagens dessa imponente jogadora de 1,98 m. Mas Tifanny - que tem 23.200 seguidores no Instagram - nunca hesitou e até expressou o seu desejo de ser convocada para a Seleção brasileira.

"Se eu estou protegida pela lei, por que hei-de estar preocupada com o que algumas pessoas dizem?", questiona, afirmando sentir-se como Neymar, criticada pela inveja.

Após a sua estreia, Tifanny Abreu não demorou a bater o recorde de pontos num jogo da Superliga feminina (39, igualado depois).

"Sempre fui muito boa pontuadora, mas agora a força é de uma mulher, não de um homem. Se eu tivesse a força de antes, não faria 30 pontos, mas 6 mil", justifica.

Mas antes da polémica no Brasil, Tifanny Abreu já tinha aberto um intenso debate em Itália, sobre a participação de transsexuais no desporto. Assim que ela terminou o processo de transição de homem para mulher (na altura jogava no JTV Dero Zele-Berlare, da segunda liga belga), e após receber o OK do COI e do Federação Internacional de Voleibol (FIVB), a brasileira, na altura com 32 anos foi jogar para a equipa do Golem Palmi, tendo-se estrado contra o Delta Informatica Trentino, num jogo da segunda divisão do voleibol feminino italiano. E o impacto foi tremendo: entrou em campo após a equipa ter perdido o primeiro set e, com 28 pontos, comandou a reviravolta (3-1), sendo eleita a MVP da partida.

Esta estrondosa estreia veio alimentar a polémica sobre as vantagens de uma transsexual como Tifanny pode ter numa competição feminina. Do alto dos seus 1,98 metros, Tifanny faz a diferença na defesa mas onde brilha mesmo é no ataque, junto à rede. Mesmo que tenha perdido força, na transição de homem para mulher. Com a transformação perdeu 60 por da sua força: antes saltava até 3,60 metros, agora apenas 3,15 metros.

Sílvia Fondriest, capitã do Trentino, disse na altura que nem na Primeira Divisão havia jogadoras do nivel de Tifanny: "Tivemos dois jogos diferentes: um até ela entrar, outro depois. A nível pessoal, ela tem todo o meu respeito por tudo o que passou. Mas, a nível desportivo, os seus parâmetros físicos não são os mesmos de uma mulher. No ano passado [2016] tive a sorte de competir na A1 [o primeiro escalão do voleibol italiano] e nem lá se vê muitas jogadoras que consigam jogar à sua altura e com um ataque tão forte", apontou a capitã do Trentino.

"Pelo amor de Deus!"

Parte da comunidade LGBT não entendeu por que ela se filiou ao MDB - partido de reconhecidos políticos conservadores, como o presidente Michel Temer - para concorrer às eleições de 7 de outubro.

Tifanny explica que o seu regresso ao Brasil foi facilitado pelo Bauru, uma equipa financiada pela federação da indústria, com forte influência do MDB.

Tifanny Abreu, transsexual, atleta e candidata às eleições brasileiras elo MDB
Tifanny Abreu, transsexual, atleta e candidata às eleições brasileiras elo MDB

"Não tenho nada contra partidos, tenho é contra pessoas. Fui incluída e eu quero incluir, se eu quero inclusão tenho que incluir", argumenta.

Tifanny é das poucas que não pertence a um partido de esquerda entre as 53 candidatas trans - nove vezes mais do que há quatro anos - que concorrem nessas eleições brasileiras.

Ela sabe que, se chegar a Brasília, um universo tradicionalmente pouco diverso e machista, não será fácil se integrar. Mas ela não sente medo, por contar com o apoio da sua mãe, dona Amália, que exigiu somente uma coisa para dar a sua bênção.

"Minha mãe me disse: 'Pelo amor de Deus! Não roube o povo como esses políticos que nos causaram tantos danos'", lembra, com um sorriso.

Tifanny deu a sua palavra à mãe que não faria isso.