Falar do trabalho realizado pelos treinadores portugueses além-fronteiras é falar, também, do percurso de Pedro Gonçalves. O técnico, de 43 anos, mudou-se para Angola no verão de 2015, depois de 16 anos na formação do Sporting. Começou a trabalhar com a formação do 1.º de Agosto, mas há dois anos foi recrutado pela federação angolana. O sucesso nos sub-17, sub-20 e sub-23 conduziu-o até à seleção principal, onde já cumpriu o seu primeiro objetivo: qualificar os Palancas Negras para a fase de grupos na corrida para o Mundial de 2022 (nesta fase ainda de forma interina).

Esta semana, Angola ficou a conhecer os adversários da segunda fase da zona africana na qualificação para o Campeonato do Mundo – Egipto, Gabão e Líbia, no Grupo F -, onde vai tentar repetir o feito inédito de 2006. É precisamente por aí que começa a nossa conversa com Pedro Gonçalves. “Sabíamos de antemão que o grau de dificuldade ia ser muito elevado e que íamos defrontar seleções muito fortes, dado que estávamos inseridos no pote 4”, começa por dizer o treinador português ao SAPO Desporto.

“O Egipto é uma potência de África, tem marcado presença nalguns Mundiais e tem uma estrela mundial como cabeça de cartaz, que é o Mohamed Salah. O Gabão também tem grandes jogadores a atuar na Europa, como o Aubameyang, e já jogou contra nós na fase de grupos de qualificação para o Campeonato Africano das Nações (CAN), portanto sabemos aquilo que vale. A Líbia tem jogadores muito tecnicistas e é capaz de criar, nos jogos em casa, uma atmosfera muito adversa para os adversários. É um grupo muito exigente, sem dúvida, mas temos de o encarar como uma oportunidade para crescermos e para nos afirmarmos no quadro africano”, explica.

Levar Angola até ao Mundial é um objetivo assumido, mas o “principal foco” neste momento passa por garantir o apuramento para o CAN, que vai ser disputado em janeiro de 2021, nos Camarões. Mais uma vez, os Palancas terão de enfrentar a oposição de um grupo de “um grau de dificuldade elevadíssimo”, formado pela República Democrática do Congo, Gabão e Gâmbia, esta última afastada por Angola da corrida ao Mundial, no passado mês de setembro.

Os dois primeiros jogos de apuramento (13 e 17 de novembro) ocorreram apenas uma semana depois da participação histórica de Angola no Mundial de Sub-17, no Brasil. Pedro Gonçalves comandou os ‘palanquinhas’ até aos oitavos de final, e três dias depois foi confirmado pela federação angolana como novo selecionador A, passando de interino a principal.

“Foi um contexto difícil para nós. Estávamos envolvidos no Campeonato do Mundo [sub-17], depois regressámos a Angola e começámos logo a pensar no apuramento para o CAN. Por força de várias condicionantes, não conseguimos preparar a equipa da mesma forma que os nossos adversários e acabámos por sofrer duas derrotas. Agora teremos mais tempo para trabalhar e para lançar os alicerces desta equipa, não só para o imediato, mas também para o futuro”, aponta o técnico português.

O trabalho na seleção angolana

Quase a completar cinco anos em Angola, Pedro Gonçalves foi chamado para assumir o comando da seleção principal numa conturbado, que se seguiu à participação no CAN de 2019, onde Angola não passou da fase de grupos, resultando no despedimento do sérvio Srdjan Vasiljevic. O balanço até ao momento tem sido “extremamente positivo”.

“A seguir à participação no CAN houve algumas situações menos agradáveis, pelo que era necessário aglutinar forças e unir a equipa em torno dos objetivos traçados. Julgo que conseguimos”, afirma o técnico. Paralelamente aos resultados, Pedro Gonçalves tem igualmente a missão de preparar “uma seleção para o futuro”. “Já nesta última convocatória, mais de metade dos jogadores chamados já tinha 24 anos ou menos. Neste momento, apenas um ou outro jogador está preparado para competir a um nível de seleções A, mas acreditamos que outros jovens poderão entrar gradualmente. Os resultados alcançados nos últimos anos, com a conquista dos Jogos da CPLP, da Taça Cosafa, a participação no Mundial de sub-17, são o reflexo de que há muito talento no país”, indica.

Apesar do “quadro económico difícil” que Angola atravessou nos últimos anos, Pedro Gonçalves não tem dúvidas de que a aposta no jogador jovem cresceu nos últimos anos, e que isso acabou por suscitar “um maior interesse a nível internacional, especialmente dos clubes europeus”. “Neste momento vejo mais agentes e clubes interessados, não só nos jovens que competem na seleção nacional, mas também naqueles que ainda não chegaram a esse patamar, mas têm mostrado muito talento. Obviamente fico orgulhoso por ter participado nessa valorização”, observa.

Reportagem SAPO Desporto
Durante um treino de preparação para o Mundial de Sub-17, no Brasil. Créditos: DR créditos: DR

O técnico destaca a “imprevisibilidade e criatividade” do jogador angolano como pontos favoráveis para o seu sucesso. “De um modo geral, são jogadores que têm muita destreza motora, o que lhes permite ter uma habilidade e uma relação com a bola fora do comum. Cabe a nós depois transpor essas características para o campo”, nota.

Em sentido inverso, o atual selecionador de Angola não fica indiferente às próprias condições socioeconómicas dos jovens futebolistas, que se traduzem negativamente no seu crescimento e na prática desportiva. "O jogador angolano acaba por não ter, na sua generalidade, uma compleição física muito elevada. Tem a ver com a genética, mas também com algumas carências, nomeadamente alimentares, que acabam por influenciar o seu desenvolvimento físico. É a realidade de Angola", revela.

Ainda assim, a maior procura dos clubes estrangeiros pelo jogador angolano levou a "um maior acompanhamento" dos jovens por parte dos clubes. "Há uma maior preocupação em dar refeições a tempo e horas, e de implementar uma alimentação mais adequada à exigência desportiva. Na federação também estamos atentos a isso", diz.

Outro problema, na opinião de Pedro Gonçalves, prende-se com a forma como os próprios angolanos olham para a seleção. “Representar o país tem de ser visto como um privilégio, o apogeu da carreira de um jogador. E eu nem sempre sinto essa disponibilidade. Não quero estar a falar caso a caso. É óbvio que os jogadores têm de sentir-se acolhidos e nem sempre é fácil, estando a jogar num patamar competitivo muito elevado, voltar a um contexto onde as condições nem sempre são do mais alto nível. Mas também é com esses jogadores que podemos crescer”, começa por explicar.

"Vejo que a população de Angola olha para a seleção A com pouca fé"

“Estamos a procurar melhorar esse quadro e isso tem acontecido nos últimos quatro jogos que tivemos. Queremos jogadores comprometidos com a seleção, que sintam a emoção de jogar por Angola. Juntando esse compromisso ao talento, que é muito, Angola terá potencial para evoluir”, defende.

O treinador português diz que tem sentido o “reconhecimento” pelo trabalho realizado no futebol jovem, mas considera ainda que existe uma descrença dos angolanos em relação à sua seleção principal. As circunstâncias dos últimos anos assim o permitiram: “Vejo que a população de Angola olha para a seleção A com pouca fé. Eu percebo. A equipa não está a conseguir atingir as fases determinantes para se sagrar campeã africana, foi ao Mundial em 2006, na Alemanha, e depois disso nunca mais voltou a qualificar-se... Mas é também neste momento que as pessoas têm de dar mais carinho à seleção que os representa.

“No primeiro jogo que fizemos contra a Gâmbia houve sempre um apoio tremendo à equipa da casa, mesmo estando a perder [Angola venceu esse jogo por 1-0], com um estádio cheio de pessoas a cantar e a dançar. É um exemplo a seguir”, aponta.

"O Rio Ave poderá ser o sítio ideal para o Gelson Dala voltar a ganhar confiança"

O regresso de Gelson Dala e outros talentos emergentes

A última convocatória de Pedro Gonçalves, referente ao apuramento para o CAN, contou com três jogadores angolanos atualmente a alinhar em Portugal: Wilson Eduardo, do SC Braga, Mateus Galiano, do Boavista, e Fábio Abreu, do Moreirense. Outro dos convocados foi Gelson Dala, na altura nos turcos do Antalyaspor, mas que já foi confirmado como reforço do Rio Ave, por empréstimo do Sporting. Show (Belenenses SAD), Jonathan Buatu (Aves) e Erivaldo (Marítimo) são outros exemplos de futebolistas angolanos a jogar na I Liga.

"Pela ligação histórica que existe entre os dois países, é evidente que a procura tem sido sobretudo de Portugal. Os jogadores angolanos já têm conhecimento do futebol português e das equipas da Primeira Liga, o que facilita a sua adaptação, mas as cinco principais ligas europeias também são um sonho para quem quer jogar ao mais alto nível, como é óbvio. Mas também já houve interessados do Brasil e do Chile, por exemplo", explica Pedro Gonçalves.

O técnico considera também que os portugueses estão mais "despertos" para a qualidade do jogador angolano, e que o próprio atleta "também já chega a Portugal com outra postura e outra dimensão de competitividade". Gelson Dala, por exemplo, foi o caso mais recente de um jogador angolano a centrar atenções no futebol português. O avançado de 23 anos chegou ao Sporting em 2016, oriundo do 1.º de Agosto, destacou-se na equipa B dos leões, mas acabou por não vingar na formação principal, tendo sido alvo de vários empréstimos. A cedência ao Rio Ave, onde já esteve por duas vezes, foi oficializada nesta quinta-feira.

Gelson Dala em ação pela seleção de Angola num jogo contra o
Gelson Dala em ação pela seleção de Angola num jogo contra o Burkina Faso. créditos: ROSÁRIO DOS SANTOS

"O Gelson é um dos maiores talentos do futebol angolano da atualidade, tem características ótimas para as funções que executa. Não tenho dúvidas de que tem capacidade para se afirmar no plantel principal do Sporting, mas o que ele precisa neste momento é de um espaço onde as pessoas acreditem no seu potencial, onde possa crescer e ganhar novamente confiança. o Rio Ave é um clube que o Gelson conhece, onde sei que se sentiu bem, acredito que poderá ser o espaço ideal para reconquistar essa confiança", admite.

Pedro Gonçalves 'aconselha' também que se preste atenção a Zito Luvumbo, jogador que chegou a ser apontado ao Flamengo de Jorge Jesus e a vários clubes portugueses, bem como a Osvaldo Capemba "Capita". "Ambos estiveram no Mundial de Sub-17 e fizeram parte dos nomeados para melhor jogador jovem africano de 2019. Fiz questão de os recrutar quando ainda estava no 1.º de Agosto", indica. "Posso falar também no Zini, que foi o nosso melhor marcador do Mundial [Sub-17] e também já tem muitos clubes interessados, no Domingos Andrade, no Gegé, no Pablo... Há muitos jogadores talentosos, não só nesta geração, mas também nos sub-20, que têm vindo a suscitar interesse lá fora", diz.

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Zito Luvumbo, uma das promessas do futebol angolano

Sporting longe da vista, mas perto do coração

Pedro Gonçalves deixou o Sporting em 2015, depois de 16 anos dedicados à formação do clube, primeiro como 'scout' e depois como treinador nas camadas jovens. Acompanhou de perto o nascimento da Academia, em Alcochete, e sagrou-se 11 vezes campeão com jogadores como João Mário, Ricardo Pereira, Cédric Soares, Podence e Eric Dier. Na última geração a seu cargo, antes de rumar a Angola, estavam Rafael Leão, Thierry Correia, Rúben Vinagre e Luís Maximiano.

"Para quem trabalha no futebol de formação, esses são os verdadeiros títulos: ver estes jovens a construir carreiras de sucesso lá fora. É um orgulho imenso", começa por dizer. "Tive o privilégio de viver anos fantásticos na academia do Sporting, onde havia um sentimento de união e companheirismo muito próprio. Não será fácil replicar aquilo que se viveu nessa altura", nota.

Ainda assim, a vontade de se dedicar em pleno ao futebol falou mais alto e Pedro Gonçalves acabou por rumar a Angola para trabalhar nas camadas jovens do 1.º de Agosto. "Era tempo de dar outro rumo à minha carreira e de me dedicar 100% ao futebol, porque no tempo em que estive no Sporting nunca tive oportunidade de trabalhar na área a 'full time'", explica.

Mesmo a trabalhar noutro país, o treinador não deixa de acompanhar o clube que representou durante 16 anos e é com "tristeza" que olha para a forma como os 'leões' foram perdendo influência na formação: "É com muita pena que vejo que os valores que sempre distinguiram o clube, o respeito pelo adversário, o saber perder, estão a desaparecer. Não vou dizer que a culpa é diretamente deste ou daquele presidente, mas é óbvio que estas últimas direções são responsáveis pelo estado em que o clube está. E os associados também não se podem destituir do que está a acontecer. Por vezes o populismo supera o realismo, e essas ondas populistas acabaram por levar a este contexto."

Pedro Gonçalves sagrou-se 11 vezes campeão nas camadas jovens do Sporting
Pedro Gonçalves sagrou-se 11 vezes campeão nas camadas jovens do Sporting créditos: DR

No 1.º de Agosto, Pedro Gonçalves começou por desempenhar o cargo de coordenador dos escalões de base e, paralelamente, treinador dos sub-15. Apesar do "projeto aliciante", o técnico admite ter vivido "tempos difíceis". "Tivemos de fazer uma reestruturação profunda na orgânica do clube, o que nem é sempre fácil de acatar por quem já lá está. Felizmente o sucesso desportivo que tivemos acabou por ajudar a implementar ideias e com isto acabei por seguir para o escalão de juvenis do 1.º de Agosto", conta.

A passagem para a seleção angolana dá-se em junho de 2018, numa altura em que o treinador procurava outro projeto. Começou por ser apresentado como treinador dos sub-17 e em pouco tempo foi subindo patamares na hierarquia até seleção A. "Se me perguntar se pensava ser selecionador nacional há três anos, estaria a mentir se dissesse que sim. Por outro lado, quando trabalhamos e temos a consciência de que o nosso trabalho é bem feito, naturalmente acabamos por evoluir e aceitar desafios mais exigentes. Este é um passo muito importante na minha carreira", assinala.

A vida (madrugadora) em Luanda

"Angola e Portugal fazem parte do mesmo planeta, mas são mundos diferentes", começa por dizer Pedro Gonçalves, quando questionado sobre a adaptação ao país africano e à capital Luanda. O técnico admite que o clima e os horários de trabalho causaram alguma estranheza no início.

"Quando cheguei a Angola disseram-me que ia treinar às sete da manhã regularmente, e lembro-me que na altura pensei logo que não ia ser fácil. Depois com o tempo percebi que, de facto, aquela era a melhor hora para se treinar. Aqui começa-se a trabalhar muito mais cedo", conta o técnico, admitindo ter sofrido "um choque inicial ao ver as diferenças socioeconómicas em Luanda".

Por outro lado, a humanidade e a descontração das pessoas ficam para a vida. "O conceito de família é algo muito importante em Angola, a proximidade dos amigos, da vizinhança... há um sentido de comunidade muito grande entre as pessoas", nota.

Apesar da distância da família, "o mais difícil no meio desta experiência", Pedro Gonçalves diz sentir-se realizado em Angola, pelo que não abre o jogo quanto ao futuro: "Falo por mim. Quando fazemos o que gostamos, acabamos por viver de forma mais descontraída. Por isso não perco muito tempo a pensar no próximo passo na carreira, sei o que tenho de fazer agora e estou totalmente focado no trabalho com a seleção."