É o tema do momento no universo do desporto (e não só). O braço de ferro entre Novak Djokovic e o governo australiano é bastante recente – tem pouco mais de uma semana -, mas promete ficar para a história. Aliás, nos dias que correm, tem todos os ingredientes para uma boa novela: pandemia, vacinação, protestos, a ameaça de um incidente diplomático, mentiras e muitas pontas soltas.

Tudo começou quando o tenista sérvio, atual número um mundial, aterrou no aeroporto de Melbourne na noite de 5 de janeiro para participar no Open da Austrália, que arranca na próxima segunda-feira. Após a chegada, as autoridades de imigração revogaram o visto do atleta por não ter cumprido os requisitos de entrada no país, apesar de uma isenção médica que lhe fora concedida para poder participar no torneio – o sérvio não estará vacinado.

Djokovic corre o risco de ser preso tanto na Austrália como na Sérvia
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Barrado às portas da Austrália, Djokovic decidiu recorrer e ficou a aguardar resposta num quarto de hotel, isolado, e sob vigilância policial. Sucederam-se manifestações de apoio ao tenista, nomeadamente do presidente sérvio Aleksandar Vucic, bem como à porta do centro de detenção em Melbourne. Até que o juiz Anthony Kelly ordenou a libertação de ‘Djoko’ na segunda-feira.

O sérvio permaneceu em solo australiano, sob a ameaça de deportação, com os seus advogados a sustentarem a isenção médica com um teste positivo à COVID-19 realizado a 16 de dezembro. De imediato surgiram imagens de Djokovic em vários eventos nos dias seguintes, um deles envolvendo dezenas de jovens, dando a entender que o atleta teria furado o isolamento.

Galeria: Djokovic treina no Melbourne Park

‘Djoko’ acabou por admitir que foram cometidas falhas no preenchimento dos documentos para entrar na Austrália e que agiu mal ao dar uma entrevista a um jornalista depois de testar positivo para o novo coronavírus. Trata-se de mais um episódio numa história ainda longe de terminar.

Enquanto aguarda uma decisão do ministro da Imigração, que tem poder discricionário para o deportar, o sérvio já sabe que vai enfrentar o compatriota Miomir Kecmanovic na primeira ronda do Open da Austrália, de acordo com o sorteio desta quinta-feira.

Uma história de amor que tinha tudo para ser feliz

A Austrália começou por ser, de facto, uma espécie de reino de Novak Djokovic. Ao todo, foram nove as vezes em que o sérvio saiu de Melbourne com o primeiro Grand Slam da temporada conquistado.

A "história de amor" (palavras do próprio tenista) começou em 2008, quando bateu na final o francês Jo-Wilfried Tsonga, e prosseguiu em 2011 (contra Andy Murray), 2012 (Rafael Nadal), 2013, 2015, 2016 (os três novamente contra Murray), 2019 (Nadal), 2020 (Dominic Thiem) e no ano passado, frente a Medvedev.

Este último triunfo permitiu a Djokovic assegurar um novo recorde, ao manter-se na liderança da hierarquia mundial pela 311.ª semana consecutiva, ultrapassando o registo de Roger Federer, de 310 semanas.

Open da Austrália: Novak Djokovic vence em Melbourne
Novak Djokovic festeja o nono título no Open da Austrália créditos: AFP or licensors

O sérvio de 34 anos espera agora alcançar a 10.ª vitória em Melbourne Park e escrever uma página dourada na modalidade. Se triunfar, tornar-se-á no tenista com mais ‘majors’ da história, deixando para trás Rafael Nadal e Roger Federer – os três somam 20 neste momento.

A decisão final sobre a possível deportação do número 1 mundial do ténis ainda não está tomada, mas o sorteio do primeiro torneio do Grand Slam do ano já foi realizado e na estreia, caso compita, Djokovic irá encontrar um compatriota, Miomir Kecmanovic.

O discurso antivacina e uma isenção que gerou controvérsia

Conhecido pelas polémicas e por suscitar alguns ódios, Novak Djokovic já tinha dado que falar no último verão, quando foi o promotor da Adria Tour, uma série de torneios com caráter amigável e benemérito nos Balcãs (Sérvia, Bósnia e Croácia).

Antes da competição, o sérvio organizou vários eventos com os participantes, onde não faltaram abraços e confraternizações. Sem restrições sanitárias, o torneio tornou-se um foco da COVID-19: três tenistas (Dimitrov, Coric e Troicki), dois fisioterapeutas e um basquetebolista da NBA (Jokic) acabaram por ficar infetados, além do próprio Djokovic e da mulher. Antes disso, o tenista foi multado por se filmar a treinar numa altura em que Espanha estava de quarentena.

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O número 1 mundial do ténis não acredita na vacinação e já defendeu as suas ideias em mais do que uma ocasião. "Pessoalmente, sou contra a vacinação e não quero ser obrigado por alguém a vacinar-me para que possa viajar", disse o tenista, já depois da mulher, Jelena, ter publicado um vídeo no Instagram sobre a teoria da conspiração sobre a implementação de redes 5G para proceder à vacinação massiva por chip.

"Não importa se falamos da vacinação ou de outra coisa qualquer na vida. Devemos ter liberdade de escolha, de decidir o que queremos fazer. Neste caso em particular, o que queremos pôr no nosso corpo", defendeu o tenista sérvio mais recentemente.

Há mais de ano e meio que Djokovic se recusa a divulgar se está vacinado, mas a verdade é que o sérvio conseguiu obter uma isenção médica para defender o título na Austrália, país onde foram implementadas medidas duras para enfrentar a pandemia.

"Djokovic solicitou uma isenção médica, que lhe foi concedida, após um exame rigoroso envolvendo dois grupos independentes de especialistas", referiu a federação australiana de ténis (TA), promotora do Open da Austrália, em comunicado divulgado após o líder mundial ter confirmado a presença no torneio.

Os motivos para a concessão desta isenção foram omitidos, pelo que as críticas não se fizeram esperar. Anteriormente, o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, tinha declarado que todos os jogadores de ténis e membros da equipa que participavam no torneio deveriam ter a vacinação completa.

"Não devem existir regras especiais para Djokovic", defendeu Scott Morrison. "Se a justificação for insuficiente, ele não será tratado de forma diferente e estará no próximo avião para casa", garantiu.

Prime Minister Scott Morrison
Scott Morrison, primeiro ministro australiano créditos: Lusa

Craig Tiley, presidente da Associação Australiana de Ténis (TA), garantiu que o número 1 do mundo não tinha recebido qualquer tratamento especial na obtenção da isenção, num processo supervisionado pelas autoridades australianas e vitorianas.

“Um total de 26 jogadores ou membros das equipas, dos cerca de 3.000 que viajaram para a Austrália, solicitou uma isenção e apenas algumas foram concedidas. Não houve tratamento especial dado a Novak", assegurou Tiley.

Visto cancelado e entrada negada

À chegada ao aeroporto de Melbourne, a isenção médica que Djokovic trazia consigo de pouco ou nada valeu, pois as autoridades consideraram o seu visto inválido e barraram o sérvio às portas do país.

A equipa de advogados de Djokovic conseguiu, ainda assim, evitar a deportação imediata com o pedido de recurso, após horas no aeroporto de Melbourne, e o tenista ficou a aguardar resposta num quarto de hotel, isolado, e sob vigilância policial.

Primeiro-ministro australiano diz que "regras são regras" no caso do visto de Djokovic
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A revogação do visto de Djokovic criou tensões diplomáticas entre a Austrália e a Sérvia. Aleksandar Vucic, presidente sérvio, manifestou prontamente o seu apoio ao tenista. "Disse a Novak que toda a Sérvia está com ele e que as nossas instituições estão a fazer de tudo para que o assédio ao melhor jogador do mundo cesse imediatamente", declarou Vucic, em comunicado.

Scott Morrison, primeiro-ministro australiano, anunciava no Twitter: "O visto do Sr. Djokovic foi cancelado. Regras são regras, especialmente quando se fala das nossas fronteiras. Ninguém está acima destas regras. A nossa forte polícia fronteiriça tem sido crucial para que a Austrália tenha uma das taxas de morte por COVID-19 mais baixa do mundo, e continuamos a estar vigilantes."

A Austrália só permite a entrada no país aos passageiros que comprovem estar vacinados contra a COVID-19, ou quem, não o estando, apresente um atestado médico a justificar a situação. A tenista checa Renata Vorácová, por exemplo, acabou por ser deportada por não estar totalmente vacinada. Os advogados Djokovic revelaram, entretanto, que este recebeu uma isenção médica após ter testado positivo para a COVID-19 no dia 16 de dezembro e que, como tal, poderia entrar no país.

Enquanto isso, centenas de apoiantes de ‘Djoko’, incluindo membros da comunidade sérvia e antivacina, protestavam à porta do hotel onde o tenista sérvio se encontrava. Em Belgrado, os pais de Novak mobilizaram manifestações em frente à Assembleia Nacional da Sérvia.

"O Novak é o Spartacus [antigo gladiador que liderou uma revolta de escravos contra o Império Romano] de um novo mundo que não tolerará a injustiça, o colonialismo e a hipocrisia", afirmou Srdjan Djokovic, pai do atual número 1 do ranking ATP e uma das vozes mais ativas nesta cruzada.

Galeria: As imagens dos protestos em Melbourne e Belgrado

A primeira batalha ganha

Ao fim de quatro dias em isolamento, Djokovic vencia o primeiro ‘set’. Na segunda-feira, o juiz Anthony Kelly ordenou ao governo australiano a libertação de Djokovic, que foi diretamente para Melbourne Park para treinar.

"Estou muito feliz e agradecido depois de o juiz ter revertido o cancelamento do meu visto. Apesar de tudo o que aconteceu, estou aqui para ficar e tentar competir no Open da Austrália. Continuo focado nisso", reagiu Djokovic nas redes sociais.

"Viajei para cá para jogar um dos mais importantes eventos que temos perante fãs fantásticos. Para já não posso dizer mais a não ser agradecer a todos aqueles que estiveram comigo neste processo e que me encorajaram a manter-me forte", concluiu na mensagem que publicou no Twitter.

Horas depois de conhecida a decisão, a família de Djokovic (pai, mãe e irmão) deu uma conferência de imprensa em Belgrado, na Sérvia, onde falaram na maior vitória da vida do tenista e voltaram a deixar duras críticas ao governo australiano.

Família de Novak Djokovic: o tio Goran, a mãe Diana, o pai Srdjan e o irmão Djordje, durante uma conferência de imprensa em Belgrado, Sérvia
Família de Novak Djokovic: o tio Goran, a mãe Diana, o pai Srdjan e o irmão Djordje, durante uma conferência de imprensa em Belgrado, Sérvia créditos: ANDREJ CUKIC

Entre mentiras e pontas soltas, o que se segue para Djokovic?

Djokovic pode ter ganho a primeira batalha judicial, mas a guerra está longe de terminar. O ministro da Imigração da Austrália, Alex Hawke, continua a considerar a suspensão do visto do tenista sérvio, e se tal acontecer, este terá de ser repatriado e ficará impedido de entrar no país durante três anos.

Para piorar, Djokovic pode enfrentar vários problemas por ter prestado informações falsas sobre as viagens feitas nos 14 dias que antecederam a chegada a Melbourne, bem como pelo facto de ter violado a regra do isolamento após receber um resultado positivo ao novo coronavírus. Vamos por partes.

Através de um comunicado publicado na quarta-feira no Instagram, Djokovic revela que a declaração de entrada na Austrália foi preenchida pela sua equipa de apoio em seu nome, classificando o caso como um “erro administrativo” e “humano”, não deliberado. No documento, foi indicado que o tenista não tinha feito quaisquer viagens nos 14 dias prévios a entrar na Austrália.

Porém, Djokovic partiu para Melbourne desde Espanha a 4 de janeiro, tendo ao que se sabe passado o ano em Marbella. Uma publicação nas redes sociais, a 31 de dezembro, mostrava o atleta num evento junto a várias crianças na Academia SotoTennis, em Cádiz.

Outra publicação, partilhada uma semana antes, mostrava Djokovic em Belgrado, onde foi fotografado ao lado de um jogador de andebol sérvio que atua no Benfica, Petar Djordjic. Ora isso significa que Djokovic esteve pelo menos na Sérvia e em Espanha nos 14 dias que antecederam a sua ida para Melbourne. Comprovada a falsa declaração, o tenista sérvio pode ser condenado até 12 meses de prisão.

Mas os problemas de Djokovic não estão circunscritos à Austrália. De acordo com o ‘The Guardian’, que ouviu vários advogados especialistas no tema, Djokovic arrisca três anos de prisão na Sérvia à luz do artigo 248 do Código Penal do país, que se podem transformar em horas de serviços comunitários, por ter violado a regra do isolamento após testar positivo para a COVID-19.

Djokovic admite erros na declaração de entrada na Austrália e após testar positivo à covid-19
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No mesmo comunicado, o atleta confirma ter feito um teste PCR a 16 de dezembro, apesar de não ter sintomas e de ter um autoteste negativo, por precaução. Diz ainda só ter tido conhecimento do resultado um dia mais tarde, 17, já depois de ter participado num evento desportivo em que entregou prémios a crianças. Todavia, os documentos submetidos no tribunal na Austrália dizem que foi diagnosticado logo a 16 de dezembro.

Ainda assim, o tenista concedeu uma entrevista ao jornal ‘L’Équipe’ no dia 18, quando já sabia que estava infetado.

“Senti-me obrigado a ir à entrevista com ‘L’Équipe’ porque não queria desapontar o jornalista, mas mantive a minha distância social e a minha máscara facial, exceto durante a sessão fotográfica. Quando regressei a casa, para me isolar durante o período exigido, após reflexão, entendo que foi um erro de julgamento e aceito que deveria ter adiado o compromisso”, confessou.

"Estou aqui para ficar e tentar competir no Open da Austrália", diz Djokovic

A Sérvia não considera que este seja apenas um "erro de julgamento" e a primeira-ministra Ana Brnabic já avisou que a atitude de Djokovic constitui uma “violação grave” das leis daquele país, anunciando uma investigação ao número um do ranking ATP.

"Se uma pessoa está positiva, tem de se isolar. Não sei quando [Djokovic] recebeu os resultados [do teste] e quando os viu. Trata-se de uma zona cinzenta à qual só Novak pode responder", disse a responsável governamental, em entrevista à BBC.

Uns contra, outros a favor: as reações ao ‘caso’ Djokovic

Uma das primeiras opiniões que surgiram sobre o assunto do momento foi a de Rafael Nadal. Sem querer criticar diretamente Djokovic, o tenista espanhol lembrou que o sérvio "conhecia as condições" para participar no Open da Austrália e, por isso, terá de arcar com as consequências.

"Penso que se ele quisesse jogar, poderia tê-lo feito sem qualquer problema. Cada um é livre de tomar as suas próprias decisões, mas elas têm as suas consequências. Djokovic tomou decisões e tem de pagar pelas consequências. Não gosto desta situação, e tenho pena dele de certa forma, mas ele conhecia as condições há meses", explicou Nadal, em declarações aos jornalistas.

Ainda assim, o atual sexto classificado da hierarquia mundial aceita a decisão judicial que pode permitir ao rival participar no Open da Austrália: "Parece-me o correto. A justiça tem de falar neste caso e eu sou sempre um defensor da justiça. Montou-se um circo com muitas histórias, mas, aparte o que possa estar em desacordo com Djokovic, a justiça falou e ele tem direito a participar."

Nadal e Djokovic vão voltar a medir forças
Nadal e Djokovic créditos: AFP or licensors

Bem mais crítico foi Stefanos Tsitsipas. "Djokovic jogou segundo as suas próprias regras. Ninguém teria pensado: ‘Posso à Austrália sem me vacinar e sem ter de seguir os protocolos’. Para Novak funcionou de forma diferente e é preciso muito atrevimento para o fazer", atirou o grego em entrevista ao "WION", órgão de comunicação social da Índia.

Em sentido inverso, Nick Kyrgios coloca-se do lado de Djokovic e culpa a imprensa por tudo o que está a passar com o número 1 do Mundo.

"Sabemos que os media gostam de criar estas tempestades de merda, como a minha história e com tudo o que está a passar-se com Novak. Como desportista australiano sinto-me bastante envergonhado pelo que estão a fazer a uma pessoa que fez muito por nós e pelo desporto. Acho que não é correta a forma como estão a lidar com a situação, mas os media gostam de dividir as pessoas", defendeu o australiano nas redes sociais.

Por fim, o português João Sousa considerou a atitude de ‘Djoko’ "um pouco egoísta": "Entendo as dificuldades por que está a passar, dado tratar-se das suas convicções. Por outro lado, é uma atitude um pouco egoísta para com os colegas de profissão. Muitos de nós, não é o meu caso, não gostariam de ter sido vacinados, mas para disputar torneios é a regra e o Djokovic conseguiu contorná-la."

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