Cabo Verde tornou o sonho em realidade ao participar pela primeira vez num Mundial de Andebol. A equipa africana chegou ao Egipto por direito próprio, tirando partido do alargamento da prova para 32 seleções. Com o Egipto a garantir uma vaga como organizador e a Tunísia como campeão africano, restavam cinco vagas para atribuir a África.

E logo na sua primeira participação num campeonato africano, Cabo Verde logrou ficar em sexto lugar, garantindo assim a penúltima vaga para o Mundial2021. Foi a primeira vez que o pequeno país de pouco mais de meio milhão de habitantes conseguiu colocar uma modalidade coletiva num Mundial.

Mas o que podia ter sido uma grande montra para os jogadores, a maioria a militar em Portugal, acabou por ser um pesadelo, devido a pandemia de COVID-19. Alguns estágios foram anulados e, nas vésperas de partir para o palco do Mundial, surgiu um contratempo: seis dos 20 jogadores inscritos testaram positivo para a COVID-19, assim como três elementos da equipa técnica, entre eles o selecionador José Morais, antigo treinador do Sporting.

Já no palco do jogo, novo dissabor: três dos atletas convocados e que já tinham sido infetados com COVID-19 mas estavam recuperados, voltaram a dar positivo nos testes realizados. Mesmo assim, a seleção crioula foi a jogo com onze jogadores e estreou-se frente a Hungria, perdendo por 34-27.

Nos testes realizados depois do jogo, mais dois casos de COVID-19, deixando assim apenas nove jogadores disponíveis, quando o regulamento não permite que se jogue com menos de 10 jogadores.

A Federação Cabo-verdiana de Andebol declarou que iria faltar ao jogo com a Alemanha mas que faria todos os esforços para ter mais quatro atletas no Cairo para assim poder defrontar o Uruguai, na esperança de vencer e apurar-se para a 'main round'. Mas os problemas de logística para ter os quatro atletas a tempo e ainda a pressão das outras equipas fizeram com que Cabo Verde desistisse de continuar em prova, colocando assim em primeiro lugar a saúde dos atletas.

"Cabo Verde informou, oficialmente, a Federação Internacional de Andebol (IHF) que desiste do evento. A IHF aceitou a desistência, que salvaguarda a saúde de todos os participantes do Mundial", indicou o organismo regulador da modalidade, em comunicado.

A IHF atribuiu derrota por 10-0 a Cabo Verde no jogo com a formação germânica, tal como na partida da última ronda do Grupo A, com o Uruguai, prevista para terça-feira, e em todas as referentes à Taça Presidente, destinada aos últimos classificados dos grupos da fase preliminar.

Uma saída precoce mas que não coloca em causa o sonho do país, de acordo com Nélson Martins presidente da Federação Cabo-verdiana de Andebol. Em entrevista exclusiva ao SAPO Desporto, o líder federativo contou os contratempos que marcaram esta inédita presença num Mundial de Andebol, explicou como a COVID-19 aniquilou os planos de Cabo Verde e fez uma projeção da modalidade no país.

SAPO Desporto: Cabo Verde podia levar 20 jogadores para o Egipto mas só conseguiu 16, devido aos casos de COVID-19 antes da partida. Depois do problema dos vistos, não foi possível recrutar mais atletas, mesmo em Portugal, para completar os 20? O que foi feito? Havia atletas de reserva caso surgissem casos de COVID-19 ou lesões?

Nélson Martins: Cabo Verde inscreveu 30 jogadores na prova, num total de 35. Mas seis ficaram em Portugal por terem acusado positivo nos testes de COVID-19, jogadores que já estavam em estágio há vários dias. Não fazia sentido a Federação Cabo-verdiana de Andebol desistir deles, cortar-lhes a esperança de ir a um evento como um Mundial, pelo tanto que lutaram. Havia a esperança de ainda poderem juntar-se à equipa, agarrámos a essa esperança até ao fim por respeito a eles e pelo trabalho que têm feito na seleção. Obviamente que tínhamos mais jogadores mas não íamos descarta-los só porque acusaram positivo a COVID-19. As pessoas adoeçam, depois melhoram e podem e viajar e depois competir.

SD: Quais foram os jogadores que testaram positivo para a COVID-19 no estágio em Portugal?

Seleção cabo-verdiana de andebol
Seleção cabo-verdiana de andebol créditos: ANNE-CHRISTINE POUJOULAT / POOL / AFP

NM: Não vou citar nomes de quem tenha acusado positivo, não acho que seja ético. Se alguém tiver de divulgar nomes, não serei eu, não me compete faze-lo.

SM: Além de ter viajado para o Egipto sem seis jogadores, Cabo Verde ficou sem alguns elementos do seu staff, entre eles o treinador José Tomás. Como é que resolveram o problema a nível técnico?

NM: Do staff tínhamos três positivos à COVID-19: o treinador, um adjunto, ficou outro adjunto disponível que se assumiu como principal. Era essa a alternativa e aproveitamo-la.

SD: Depois de terem detetado mais dois casos de COVID-19 entre os jogadores, após o encontro com a Hungria, tentaram chamar mais quatro atletas para completar a comitiva. O que aconteceu? Não foi possível ter esses jogadores a tempo do jogo com o Uruguai?

NM: Após os dois casos de COVID detetados depois do jogo com a Hungria, tentamos trazer quatro jogadores mas montar uma logística para ter cá [no Cairo] estes elementos não é fácil. E ainda tivemos outros entraves: entre os quatro jogadores, um estava lesionado, outro tem um passaporte retido na Embaixada de Portugal por causa do pedido de visto e um terceiro acusou positivo a COVID-19 nos testes feitos antes de embarcar. Tentamos ainda mais dois jogadores que atuam em Portugal, um até já estava em trânsito, outro preparava-se para vir mas ainda estava à espera do resultado de um teste de COVID-19. Foi então que decidimos que, se calhar, o melhor era abandonar a prova. Ainda sobre esta questão, dizer que era desnecessário, o jogador chegou cá já com a nossa decisão tomada porque entretanto, já providenciando a vinda dos três, apareceram mais três casos positivos. Por isso, já não fazia sentido a vinda deles, embora um dos chamados já tivesse chegado e juntado à equipa.

SD: Acha que Cabo Verde estava preparado para ter uma seleção num Mundial de uma modalidade coletiva? Até porque, até janeiro de 2020, Cabo Verde nunca tinha estado numa grande prova internacional e na 1.ª participação num campeonato Africano, consegue terminar 6.º posto.

NM:  Se Cabo Verde não estivesse preparada para participar num evento de nível Mundial, não chegaria ao Egipto. Essa preparação foi condicionada pela pandemia de COVID-19 mas fizemos dois estágios, um no Porto e outra na Nazaré. Estávamos preparados, mas os percalços que surgiram não apontam para uma má preparação de Cabo Verde para uma prova como um Mundial.

SD: No jogo com a Hungria, Cabo Verde deixou uma boa imagem, principalmente depois dos primeiros dez minutos difíceis. O resultado dava esperanças para passar à segunda fase? Até porque o Uruguai, que se apurou, perdeu por 44-18 com a Hungria e, Cabo Verde, mesmo com todas as dificuldades, perdeu por 34-27 com os húngaros.

Veja o resumo do Hungria-Cabo Verde

NM: Após o jogo com a Hungria e mesmo antes, Cabo Verde tinha a certeza que ia passar de fase e estar na 'main round'. Não por desprezar adversários, que não não o fazemos, mas viu-se claramente que o nosso andebol é superior a do Uruguai e certamente iríamos passar de fase.

SD: O sexto lugar logo na primeira participação num Campeonato Africano e esta luta no Mundial frente a uma seleção europeia forte, dão esperanças para o futuro do andebol cabo-verdiano? É possível ver a seleção de Cabo Verde mais vezes em competições africanas e Mundiais?

NM: Essa geração que hoje integra a seleção de andebol é uma geração de ouro. Ainda vamos vê-la em outras competições e a brilhar. E vamos ver esta geração mais vezes em provas africanas e, quiçá, em Mundiais.

SD: No geral, que balanço faz de toda esta aventura de Cabo Verde no Mundial? Que ensinamentos foram tirados e que podem servir no futuro?

NM: A nível de balanço, apesar de tudo, considero que foi um saldo positivo. Realizamos o sonho de estar num Mundial, de fazer um jogo num Mundial, mostrámos a nossa qualidade ao Mundo, e é isso que interessa. O resto são percalços da vida que toda a gente e todas as equipas estão sujeitas. Os EUA, uma potência com milhões de habitantes, não conseguiram montar uma equipa para competir, tal como a República Checa. Apesar das dificuldades, viemos, competimos, mesmo que tenha sido apenas uma vez e deixamos a nossa imagem. Penso que é isso que faz toda a diferença.

SD: A equipa técnica é para manter para os próximos compromissos?

NM: Ainda é cedo para falar na continuidade ou não da equipa técnica. Não sei… Termino o meu mandato em fevereiro, faço a Assembleia-geral eletiva, quem vier para tomar os destinos da Federação Cabo-verdiana de Andebol, decidirá que equipa técnica escolher para as várias seleções de andebol existentes.

SD: O que se pode esperar do andebol cabo-verdiano nos próximos anos? Com a presença no Mundial e no Africano, já será mais fácil convencer atletas que atuam no estrangeiro a jogarem pela seleção de Cabo Verde?

NM: Neste momento não temos assim tantos atletas a militar no estrangeiro que possam vir à Seleção de Cabo Verde. Os que tínhamos, já estão todos ou quase todos na seleção. O que podemos fazer é exportar mais jogadores e aumentar a sua qualidade e poderem integrar a seleção e teremos continuidade porque esses um dia acabam por sair da seleção. Depois disto tudo, o andebol cabo-verdiano tem tudo para andar. Espero que os dirigentes que vierem no futuro, saibam continuar o trabalho que tem sido feito, e dar a imagem e o brilho que o andebol cabo-verdiano tem todas as condições para dar.

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