Fabiano Flora teceu rasgados elogios ao futebol italiano e ao seu processo de regeneração. O técnico português, atual selecionador de Timor-Leste, avança que "neste momento em Itália, estão a reinventar o futebol".

Numa pequena entrevista ao SAPO Desporto, o antigo adjunto do italiano Giuseppe Galderisi no Olhanense garante que "80% por das equipas da Serie A, lutava pelos três primeiros lugares da Liga Portuguesa".

Conhecido como o Mourinho do Myanmar, Fabiano Flora analisa a evolução tática do futebol italiano, faz uma comparação com o português e deixa um apelo a todos os técnicos portugueses: é preciso união e abertura a novos conhecimentos para fazer evoluir o nosso futebol.

SAPO Desporto: O que tem feito durante este período de confinamento obrigatório?

Fabiano Flora: "Tenho aproveitado o tempo para estudar, atualizar as minhas ideias, partilhar com outros treinadores, princípios e conteúdos que nos acompanham no mundo do futebol e, ao mesmo tempo, a realizando formações contínuas, seja em Portugal, mas sobretudo em Itália (como realizei o meu curso de nível III em Florença, tenho a obrigação desta formação continua através da Federação Italiana de Futebol)."

SP: Quando olhamos para o futebol português e italiano vemos algumas diferenças. Do conhecimento que tem destas duas realidades, que diferenças encontra?

FF: "O Paulo Fonseca abordou recentemente a evolução da Série A, destacou a qualidade da prova e deixou um apelo aos portugueses: que sigam o campeonato Italiano.

Digo-lhe com toda a sinceridade que as pessoas não tem noção da complexidade da Serie A e da qualidade dos treinadores italianos. Para quem pensa que no futebol esta tudo inventado, engana-se redondamente. Neste momento em Itália estão a reinventar o futebol. Tive a sorte de trabalhar cinco anos em Itália, seja com a Lazio e Juventus, e ter podido acompanhar de perto a evolução da Serie A e, ao mesmo tempo, a ideologia dos treinadores italianos, até porque trabalhei de perto com um deles (Giuseppe Galderisi) aquando da minha vinda para o Olhanense em 2014.

Digo-vos com toda a sinceridade: 80 por cento das equipas da Série A lutava pelos três primeiros lugares da Liga Portuguesa... é uma realidade e, ao mesmo tempo uma preocupação.

Penso que houve uma junção perfeita entre aquilo que são os métodos italianos com os métodos espanhóis. Não é por acaso que nos últimos anos as seleções mais jovens italianas tiveram êxito, vice-campeões europeus de Sub-17 e sub-19, além de nos dois últimos mundiais de Sub-20 terem ficado em 3.º e 4.º lugar. Neste momento, para mim, a Série A é a melhor Liga do Mundo. Os treinadores italianos são os melhores do ponto de vista estratégico e tático. Estão um passo a frente... sem dúvida alguma. Este facto deixa-me preocupado porque nós, portugueses, estamos cada vez mais a perder terreno. Vejamos o nosso declínio nas principais ligas europeias. O que referiu o José Mourinho e o Wenger acerca dos treinadores portugueses, ainda há pouco tempo, não deixa de ser verídico: há bons treinadores portugueses, mas não somos os melhores. A nossa evolução enquanto treinadores parte sobretudo da nossa partilha. Devemos, humildemente aprender com os outros, sair da nossa zona de conforto e procurar evoluir, temos também de dar este passo em frente na interpretação da complexidade do jogo."

SD: Essas diferenças de que fala, são sobretudo a nível tático?

FF: "Tenho a sensação que, por vezes, adotamos determinado tipo de jogo só porque faz parte da moda, e por ser esteticamente bonito. A estratégia vai muito para além de questões de beleza. Temos de entender qual o caminho pelo qual o futebol atual se rege. Já não há só situações de 'tempo e espaço', há também questões de 'contagem' que devem ser interpretadas pelos próprios jogadores, que leva a equipa a adotar diferentes sistemas de jogo e dinâmicas dentro dos 90 minutos. Sistemas de jogo? Sim, a compreensão dos sistemas é fundamental para que a sua equipa adote determinado tipo de comportamentos e tenha êxito.

Temos de entender o porquê e o quando realizar determinado tipo de abordagens. Exemplo: se faço a construção baixa com 4+2, isto tem uma lógica. Esta fase não deve passar única e exclusivamente pela posse, devemos construir desta forma porque o objetivo é aquele de marcar golo. Mas como? Talvez com esta disposição consigamos trazer seis jogadores adversários e assim criar uma igualdade numérica de 4×4 em espaços mais avançados. Tudo deve ser entendido por uma lógica de contagem, de superioridade, de igualdade ou inferioridade numérica. Esta disposição deve ser modificada se o adversário adotar uma postura de contenção, talvez com a criação a 3+1 ou 3+2 consigamos fixar em espaços mais baixos seis, ou sete jogadores adversários. E assim sucessivamente, devemos passar aos jogadores esta compreensão complexa do jogo, para que depois eles possam escolher de forma correta o caminho a seguir. Isto porque o jogo passou a ser interpretado de diferentes formas, dada a avaliação do contexto e dada a contagem no preciso momento pelos próprios jogadores e não apenas pelo seu treinador.

Ouvia há pouco tempo um treinador conceituado português dizer que se a equipa adversária joga com uma linha de 4, que o seu ponta de lança deve fazer o movimento circular orientando o jogo para o corredor lateral para aí pressionar e recuperar a posse de bola, ou se houver uma construção a 3 da equipa adversária, levar o seu extremo a pressionar o terceiro central...bem, estes conceitos estão corretos, mas tem a sua validade em determinados contextos e em determinadas ligas. Se eu transportar estes princípios de caráter defensivo para Série A no que diz respeito ao 'pressing' organizado, poderão não ter esta validade, uma vez que há equipas que saem da pressão pelo lado de onde receberam o 'pressing', encontrando sempre o terceiro homem livre.

O futebol mudou... No processo defensivo, arrisca-se muito mais, há obrigatoriedade de romper constantemente as linhas, muitas vezes se joga 1×1 no setor defensivo. No futebol antigo já havia esta abordagem de marcar em antecipação, não havia era tanto risco porque existia na altura o líbero que fazia constantemente coberturas aos seus colegas. Digamos que os conceitos de zona estão a par e passo com esta ideia individual do Marco-Marco, dependendo sempre da interpretação e cálculo do risco. As distâncias entre jogadores também não são tão rígidas como outrora, esta regra de distâncias uniformes entre os 4 do setor defensivo poderá não ser a mais viável nos dias de hoje. Ganhou forma uma distância diferente, sobretudo entre o lateral e o central, no sentido de 'roubar' tempo e espaço quando o adversário mudar o centro de jogo.

No processo ofensivo, a relevância das transições ofensivas, a utilização de vários sistemas e dinâmicas, ou seja, uma equipa camaleónica durante os 90 minutos. Também a colocação de um maior número de jogadores dentro de área, muitas vezes cinco e seis jogadores, independentemente do sistema de jogo, até porque esta invasão da área nada tem a ver com o próprio sistema, mas sim com ideias. Há sim sistemas que favorecem esta invasão, até porque esses jogadores se encontram mais próximos da área, como acontece num 4x2x3x1 ou num 3x5x2. Outros conceitos importantes: a colocação de extremos bem abertos e profundos, muitas vezes sobre a linha defensiva adversaria, prontos para atacar a profundidade central ou receber em largura para realizar o 1×1, colocação dos médios entre linhas, o ataque à profundidade de dois e muitas vezes três jogadores em simultâneo, a colocação preventiva de um elevado número de jogadores fora do centro de jogo..., etc.

Mesmo a nível de intensidade com que abordamos o jogo e o treino, não sei se os métodos e meios que usamos são suficientes e os mais corretos para depois afrontarmos com êxito clubes de Liga Europa ou de 'Champions'. Muitas vezes o nosso êxito tático depende da qualidade do próprio jogador, é um facto, mas os níveis de intensidade dependem daquilo que fazemos no dia-a-dia. Os jogos reduzidos poderão não ser suficientes para atingir intensidades idênticas as de um jogo formal. Talvez esta seja uma das principais causas da existência de um elevado número de lesões no futebol atual.

Portanto, considero que a maior parte de nós, salvo algumas exceções, continuamos a adoptar conceitos e princípios que, no meu entender, trazem um valor relativo ao próprio jogo: o jogo de posse pela posse, de jogar dentro com os extremos, com os laterais largos, apenas com a defesa à zona, adotando movimentos por trajetórias, de adoptarmos o mesmo sistema com as mesmas dinâmicas durante o mesmo jogo e até mesmo durante a época desportiva, etc. Portanto, quando comparo estas duas realidades, italiana e portuguesa, faz-me lembrar as pautas musicais entre o Ludwig van Beethoven e um músico do século XXI (com todo o respeito). É urgente esta nossa evolução, não podemos continuar na sombra do José Mourinho, temos que nos unir e trabalhar em prol de um objetivo comum que será aquele da aprendizagem do futebol moderno. Caso contrário iremos ficar cada vez mais para trás.

SD: Falou da vertente tática e daquilo que poderá ser o trabalho do treinador mas depois há a componente indivudual, a qualidade do jogador...

FF: "Tudo parte do trabalho que é desenvolvido nos escalões jovens. Estamos a caminhar para uma maior relevância de conceitos de tática individual e técnica especializada. Nos dias que correm ganha maior importância a condução de bola e até mesmo a receção de bola com a sola do pé, muitas vezes partindo do próprio guarda-redes. Isto não deve ser visto como um elemento de técnica individual pura, mas sim deve ser vista como forma de estratégia ao próprio jogo. Com estas habilidades individuais podes atrair o adversário para que depois possas ocupar espaços mais avançados através do teu colega em cobertura ofensiva ou através da procurar do terceiro homem.

E aqui entramos na maior diferença entre a metodologia italiana e a nossa portuguesa. O maior objetivo da escola italiana é aquele de formar indivíduos, talvez por isso os treinadores da formação sejam chamados de Instrutores. Durante grande parte do percurso formativo do atleta, procura-se sobretudo desenvolver habilidades de tática individual, do ponto de vista defensivo e ofensivo. Entendo que deveríamos em Portugal, na formação, dar muito mais espaço aos elementos de técnica e tatica individual, para que os miúdos quando chegassem a equipa principal estivesse mais preparados e com processos individuais consolidados. No meu entender, não é so através de algumas formas de jogadas que conseguimos potenciar determinadas habilidades técnicas. Dou alguns exemplos: como consegues potenciar através dos jogos reduzidos o passe longo, o cabeceamento, o remate, a receção com o peito, etc? Acaba por ser engraçado observar que optamos por estas formas de jogadas muitas vezes através de jogos reduzidos onde colocamos um limite de toques, aniquilando completamente as habilidades de condução e drible. Depois no jogo vamos pedir ao miúdo que realize 1×1, acaba por ser muito contraditório...

Porque não o fazemos? Da muito trabalho observarmos e planificarmos o nosso próprio trabalho em prol das dificuldades do miúdo. É muito mais fácil colocar 7 contra 7 e eles que joguem, pensando que através do jogo conseguimos corrigir todos os aspetos de caráter individual. É uma visão completamente errada. Se fôssemos por essa lógica, partimos do pressuposto que todos os atletas chegariam à Primeira Liga. As coisas não são assim tão lineares, é preciso um trabalho complementar de caráter especifico para que, de facto, se possa desenvolver e potenciar as capacidades dos atletas. Do ponto de vista tático individual, dou-vos outro exemplo: como podemos ensinar uma marcação à zona se os nossos atletas nem individualmente sabem marcar...? Não sei se já se questionaram o porquê do Rúben Dias ter sido considerado o melhor jogador da final do Torneio da Liga das Nações. Esta avaliação passou com certeza pela sua prestação de carácter individual, foi sem dúvida perfeito, sendo uma exceção à regra.

Reparem nesta lógica: todos nós sabemos que a criatividade é essencial no futebol moderno. Exemplo: esta capacidade e qualidade em ler o jogo e depois realizar um passe impossível, parte sempre de um pressuposto... Há, sim, uma tomada de decisão, mas que acompanhada e complementada por uma execução técnica e motora. Portanto, tudo parte de uma base. Este aspeto de correção técnica e motora deve estar sempre presente, é primordial. Sobretudo nesta era moderna onde o futebol de rua desapareceu. Se assim não fosse, não fazia sentido irmos buscar constantemente jogadores ao Brasil.

SD: Portanto, é preciso uma mudança se não quisermos perder o comboio da evolução do futebol?

FF: "Que fique bem claro que, com estas minhas palavras, não coloco em causa ninguém. Nós, treinadores portugueses, não somos piores nem melhores do que os outros. Quero sim sensibiliza-los para a urgência de darmos um passo para a frente. Tive e tenho uma formação diferente, portanto vejo o futebol de outra perspetiva. Agora sou sim realista, e entendo que o caminho que todos nós estamos a seguir, não é o mais indicado... incluo certamente todos os agentes desportivos do nosso futebol. Há necessidade de reformas concretas inseridas em verdadeiros valores sociais e desportivos, tal como nos ensina a Lei de Bases do Desporto."